No clássico livro As veias abertas da América Latina, o jornalista uruguaio Eduardo Galeano afirmava que, no continente latino-americano, a “riqueza da terra”, em muitas ocasiões, contrariando a hipótese do determinismo geográfico, significou também a “miséria do homem”. Durante o período colonial, regiões abundantes em recursos naturais, como Potosí na Bolívia (reservas de metais preciosos) ou o litoral nordestino (solo de massapé, propício para a lavoura canavieira) foram alvos de intensa cobiça dos invasores europeus, que as exploraram ao máximo. Não por acaso, Potosí e o Nordeste ainda registram indicadores sociais extremamente precários, herança direta do período colonial.
Na época, a religião cristã foi o principal meio utilizado pelos europeus para justificar a colonização de nosso subcontinente. Com uma cruz em das mãos, e uma espada na outra, os europeus foram responsáveis pelos genocídios de vários povos e pela usurpação de seus fartos recursos naturais, sob o argumento de converter os “impuros” indígenas à fé cristã. Já no século XIX, durante o chamado “Imperialismo”, os europeus recorreram a outro mecanismo para legitimar a exploração de outros povos: a ciência. Sob o pretexto da “missão civilizatória” e de uma suposta superioridade do homem branco, foi a vez de asiáticos e africanos também serem saqueados pelas grandes potências globais.
Pois bem, no presente século a maioria das ex-colônias americanas, africanas e asiáticas já são nações politicamente independentes há bastante tempo, mas seus recursos naturais continuam sendo cobiçados por povos alhures, sobretudo pela grande nação imperialista de nossa contemporaneidade: os Estados Unidos da América. Se os europeus de outrora utilizaram a religião e a ciência para corroborar a exploração alheia, os Estados Unidos recorrem a um mecanismo tão poderoso quanto os anteriores para justificar suas empreitadas mundo afora: os meios de comunicação de massa, ou simplesmente, a mídia.
Nesse sentido, nos últimos meses tem acentuado a campanha midiática global contra o atual alvo da cobiça estadunidense: o petróleo venezuelano. Séculos após o colonialismo europeu, a América Latina ainda é vista como simples fornecedora de matéria-prima para as grandes potências globais. Agora não se trata mais de “catequizar” ou “civilizar” os venezuelanos, mas de levar a “democracia” para os nossos vizinhos boreais. E, como toda guerra híbrida realizada por procuração, Washington recrutou o seu principal aliado sul-americano: o Brasil.
Sendo assim, a imprensa brasileira (colonizada até em sua nomenclatura, pois a palavra “mídia” nada mais é do que a adaptação do inglês “media” para a língua portuguesa) tem bombardeado a população com informações tendenciosas e muitas inverídicas sobre a Venezuela. No melhor estilo maniqueísta, Maduro é representado como o “mal absoluto”, e a única solução possível para superar a “crise humanitária” pela qual a Venezuela atravessa está no governo autodeclarado de Juan Guaidó, reconhecido pela chamada “comunidade internacional” (eufemismo para “interesses dos Estados Unidos e das grandes potências globais”). Uma breve análise sobre o léxico dos noticiários internacionais da imprensa brasileira é suficiente para compreender o seu viés ideológico pró-imperialista. A própria alcunha de “ditador” para Maduro é absolutamente descabida, pois, conforme é do conhecimento de todos, ele não promoveu nenhum tipo de golpe de Estado, foi eleito pelo voto popular. Além do mais, se Maduro é tão autoritário assim, por que não prendeu ou expulsou do país Juan Guaidó, que tenta usurpar o seu cargo? Imagine, por exemplo, se um parlamentar qualquer, de uma hora para outra, se declarasse presidente do Brasil, como a nossa “democrática” mídia reagiria?
Mas é claro que toda ação de saquear recursos naturais alheios não se pode mostrar como tal. Segundo a versão da grande imprensa brasileira sobre a atual etapa da crise venezuelana, o governo de Caracas tem impedido que entrem em seu território cerca de oito toneladas de remédios e alimentos doados por estadunidenses e seus aliados, a chamada “ajuda humanitária”.
No entanto, a realidade é muito mais complexa do que os poucos minutos dos noticiários internacionais. A tal “ajuda humanitária” nada mais é do que uma versão moderna da “missão civilizatória” anteriormente citada, ou, recorrendo a mais uma analogia histórica, uma espécie de “Cavalo de Troia” contemporâneo, pois representa uma cortina de fumaça para uma possível intervenção militar estadunidense na Venezuela.
Além do mais, oito toneladas de alimentos estão muito aquém do que o governo venezuelano distribui mensalmente através dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP) a mais de 6 milhões de famílias. Conforme apontam veículos da imprensa alternativa, como o site “Resistir.info” e o Diário Causa Operária, nos últimos dias a Venezuela recebeu 300 toneladas de alimentos e 933 toneladas de remédios através de uma cooperação com Rússia, China e Cuba. O mesmo Trump que ofereceu 20 milhões de dólares em “ajuda humanitária”, foi responsável por bloquear 30 milhões de dólares da Venezuela em bancos. Essas informações, evidentemente, não veremos nos grandes grupos de comunicação brasileiros.
Mas, se tentar controlar o petróleo venezuelano tem sido uma tarefa extremamente árdua para a grande potência global, sobretudo porque Caracas conta com aliados de peso como Rússia e China (como diria Mané Garricha, “faltou combinar com os russos”), como os grandes capitalistas globais conseguiram acesso rápido e privilegiado ao nosso pré-sal sem precisar disparar um tiro? Por aqui as coisas foram muito mais simples: bastou uma incessante campanha midiática que convocou a classe média verde e amarela para ir às ruas pedir a deposição de uma presidenta democraticamente eleita, que, de alguma maneira, representava um entrave para as ambições insaciáveis dos grandes capitalistas. Derrubado o governo, uma das primeiras medidas do mandatário posterior foi, justamente, entregar o nosso pré-sal para iniciativa privada. Lembrando Vargas: “o petróleo é deles!”. Em relação ao Brasil, o Tio Sam pode dormir tranquilo e se orgulhar de seu obediente e prestativo vizinho do sul.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do PROEJA do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.