A vitória de Netflix no Oscar, depois de ter ganhado o Leão de Ouro em Veneza é uma dura derrota para o Festival de Cannes e os distribuidores franceses. Assinala também uma nova fase na história do cinema.
Isabel Coixet, uma cineasta espanhola hiperativa, já presente diversas vezes no Festival Internacional de Cinema de Berlim com seus filmes, não escondia sua irritação, na coletiva com a crítica cinematográfica.
Um grupo de 160 produtores e distribuidores alemães havia entregue um abaixo-assinado ao diretor do Festival e à ministra alemã da Cultura, pedindo a retirada do seu filme Elisa e Marcela da Competição Internacional.
O motivo não tinha nada a ver com moral ou homofobia. Seu filme, no qual se conta uma história de amor entre duas normalistas, em 1901, é uma produção da Netflix, não destinada à exibição nos cinemas mas a uma visualização nos computadores, celulares ou num ecrã familiar acoplado ao computador via streaming.
A iniciativa dos produtores e distribuidores alemães não foi acolhida, ao contrário do que ocorreu, no ano passado, na seleção dos filmes para o Festival de Cannes.
Thierry Fremaux, o delegado-geral responsável pelo Festival de Cannes, homem de cinema desde sua juventude, deve estar comemorando sua desforra. Ainda em 2017, ele com o apoio de Pierre Lescure, presidente do Festival, criador do Canal+ e sucessor de Gilles Jacob, havia aceitado dois filmes longa-metragem de Netflix para concorrerem à Palma de Ouro. Eram Okja, do coreano do sul Bong Joon-ho, e The Meyerowitz Stories, do americano Noah Baumbach.
Imediatamente, os distribuidores franceses se puseram em pé de guerra, revoltados com a ideia de haver em competição em Cannes filmes destinados a não serem vistos nos cinemas. Fácil de se imaginar as perdas em dinheiro com a ausência nos cinemas do público desses filmes, quando ainda é recente o enorme investimento dos grandes distribuidores nas multisalas de cinemas nas galerias e shoppings.
Thierry Fremaux e Pierre Lescure tiveram de se explicar diante do conselho de administração do Festival de Cannes e seus mandatos balançaram. O argumento usado era lógico e incontestável – Cannes só pode premiar filmes destinados a exibições normais nos ecrãs dos cinemas, nada de telinhas de computadores e muito menos de celulares.
A visualização em streaming dos filmes exibidos nos cinemas é permitida observados certos prazos, que podem chegar até a três anos depois do lançamento no cinema. Não há exceção: os filmes valorizados com exibição em Cannes têm de ser prioritariamente exibidos nos cinemas e cumprir os prazos para visualização.
Netflix, que começou vendendo DVDs de filmes, exibidos ou em exibição nos cinemas, não deveria tentar mudar a norma francesa e o circuito normal dos filmes.
Porém, a direção de Netflix via bem mais longe que a curta visão dos conselheiros de Cannes sob pressão ou ligados aos distribuidores de filmes. Com mais de cem milhões de assinantes, Netflix considera o streaming uma outra maneira individual das pessoas chegarem aos filmes, sem precisarem sair de casa, em viagem, podendo interromper ou rever cenas e sem terem de pagar entrada no cinema, mas uma mensalidade menor que uma entrada de cinema, que permite também ver diversos filmes e séries com outras pessoas da família.
Netflix não era a única empresa distribuidora de filmes por streaming. Para se diferenciar tinha decidido produzir filmes e séries de qualidade num número cada vez maior, a tal ponto que hoje produz quase tanto quanto Disney e Warner. Em 2013, a série House of Cards com Kevin Spacey obteve um enorme sucesso, fazendo Netflix conquistar seu espaço. O caminho estava a ser aberto para se impor em todo mundo.
Enquanto isso, em Cannes, postos contra a parede, Thierry Fremaux e Pierre Lescure deram marcha-à-ré depois da polêmica provocada e da advertência tomada. Para 2018, a regra de participação na competição de Cannes só para filmes exibidos nos cinemas passou a ser rigorosa. Diante da perspectiva nada interessante de ver seus filmes apresentados fora de competição, Netflix retirou seus melhores filmes já entregues a Cannes, entre eles Roma, do mexicano Alfonso Cuarón, e levou-os à Mostra de Veneza.
E aconteceu o que o Conselho de Administração do Festival de Cannes e os distribuidores franceses não esperavam – o filme Roma ganhou o Leão de Ouro. E, no domingo, ganhou três Oscars. Em compensação o Festival de Cannes, considerado até agora, o mais importante dos festivais festivais, saiu desprestigiado. E os distribuidores franceses de filmes nos cinemas saíram fragilizados.
Como os outros principais festivais, o de Berlim, Veneza e Locarno já declararam nada ter contra os filmes produzidos por Netflix, será insustentável para Cannes, manter a regra de aceitar só filmes destinados à exibição nos cinemas. Uma proposta intermediária, prevendo a exibição nos cinemas franceses dos filmes Netflix selecionados por Cannes está atualmente em negociação, poderá ser aprovada pro forma, mas não impedirá o streaming desses filmes para os assinantes de Netflix.
E o futuro ?
O temor dos distribuidores e donos das redes de cinemas tem fundamento. A crescente utilização da Internet e o streaming, visualização sem necessidade de gravar, já estão colocando em questão a sobrevivência da televisão, principalmente entre os jovens europeus, conquistados pela numerosas possibilidade de utilização dos celulares.
O cinema, com a projeção dos filmes de alta definição em enormes ecrãs ou ecrãs menores nas multisalas, irá seguir o caminho das óperas ?
A tendência geral será a dos grandes estúdios distribuírem seus filmes também em streaming concorrendo com Netflix ? As multisalas terão sido um mal investimento, frequentadas apenas por um público infantil ?
A tendência será das famílias e dos casais em formação se encontrarem para curtirem juntos um filme streaming. Para evitar essa tendência, os cinemas poderão propor opções mais interessantes que pipocas.
Enfim, haverá uma repercussão nos festivais de cinema, onde os críticos serão poupados das viagens e de disputar um bom lugar para ver o filme ?
É bem possível que críticos selecionados não precisem mais viajar, recebam em casa os filmes em competição e possam mesmo votar pelos filmes preferidos. Cannes, Veneza, Berlim, Locarno farão a seleção e enviarão os filme em streaming.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.