Quando, certa manhã, acordou metamorfoseado num inseto monstruoso, aquele pacato caixeiro-viajante cometeu a suprema ousadia de se expor sem máscaras. A repulsa foi previsível e inevitável: a metamorfose daquele pequeno funcionário insignificante que vivia a banalidade metódica de seus dias era a metáfora de um sistema que nos desumaniza a todos, mas que só pode funcionar ao preço da ignorância de nossa condição. Assumindo-se radicalmente como inseto, aquele homem comum e medíocre era nosso espelho insuportável.
A interpretação de Hélio Pellegrino do famoso conto de Kafka, num artigo publicado originalmente em junho de 1968 no Jornal do Brasil e reproduzido vinte anos depois em livro, permite um paralelo com o caso do jogador Adriano: o ex-garoto pobre transformado em celebridade por imposição do complexo midiático-empresarial, que fabrica imperadores e outros fenômenos – e depois os descarta –, decide ‘dar um tempo’ e provoca espanto, indignação e escárnio ao dizer que não é feliz assim e que deseja voltar a ser um homem comum. Suprema ousadia: declara seu amor pelo lugar (‘a favela’) onde nasceu. Por isso, precisa ser ridicularizado, execrado, criminalizado: é uma afronta insuportável rejeitar o que todos exaltam.
As verdadeiras razões do jogador talvez jamais sejam conhecidas. O que se pode, e de fato importa, avaliar são suas declarações e o tratamento que a nossa imprensa deu ao caso, pelo que revela de insensibilidade, moralismo e preconceito.
O estigma da favela
Adriano deveria ter embarcado de volta à Itália no dia 2 de abril, depois do último jogo da seleção brasileira pelas eliminatórias da Copa do Mundo. Não viajou. A partir desse fato, e dos comentários do técnico de seu clube, o Inter de Milão, de que o jogador estaria enfrentando ‘um problema muito sério’, começaram os boatos sobre alcoolismo, drogas e depressão decorrente de uma frustração amorosa.
A aura de mistério intensificava as especulações: como não era localizado, Adriano foi dado como desaparecido, refém de traficantes, teria sido baleado e até morto.
Na verdade, nunca esteve desaparecido. Apenas não aparecia – o que é bem diferente –, e as pessoas com quem poderia ter contato não informavam seu paradeiro.
Os boatos continuaram mesmo depois de amigos, parentes e seu próprio empresário afirmarem que ele estava em casa, ‘com a família’.
Estava mesmo, mas antes havia passado uns dias ‘na favela’.
O medo do caveirão
Essa informação já era objeto de especulação e foi o quanto bastou para detonar a onda de preconceito. O jornal carioca O Dia caprichou: primeiro, destacou o ‘sumiço’; depois, misturou os ingredientes clássicos para a exploração da conduta reprovável: o convívio na favela – antro do vício, do crime e da perdição – e a ‘loucura’ pela loura da Zona Sul, esse permanente objeto de desejo de pretos e mulatos recalcados. Assim sustentou as edições da semana: Adriano teria sido ‘resgatado’ do morro, era suspeito de estar entre ‘más companhias’ e de consumir cocaína – o gesto banal de esfregar o nariz, congelado numa foto casual do jogador em campo, seria indício bastante para isso –, estava tão perdido que a mãe apelava à oração (‘Rezem por meu filho’), pois ‘salvação, só pela fé’.
Ao mesmo tempo, exibida na capa, a loura siliconada de coxas suculentas, embora não desse o menor sinal de ter ‘caído em prantos’, falava sobre o namoro conturbado: negava que o jogador usasse drogas e dizia-se cansada das tantas vezes em que foi buscá-lo no morro, a pedido da mãe dele, ‘que tem medo do caveirão’.
Como se sabe, ninguém precisa sair de Milão ou subir o morro para consumir drogas. E a referência ao medo do caveirão – nem tanto dos traficantes –, embora tão significativa, ficou assim perdida no meio do texto.
Enxurrada de lugares-comuns
Paralelamente, O Dia explorava um jogo de contrastes e de (supostas) contradições. Assim, Adriano aparece feliz ao lado da loura, mas a ‘paixão maior’ da manchete do caderno de esportes tinha outro sentido: o jogador não se referia à mulher, mas à favela. Da mesma forma, estaria ‘na favela o mesmo Adriano de sempre’, embora a foto mostrasse o jogador com suas (boas ou más?) companhias, no mar da Sardenha, batizando seu iate com uma garrafa de Don Pérignon. (O jornal não cita a marca da famosa champanhe, identificável pelo formato do rótulo, talvez por considerar irrelevante esta informação para seu público ‘popular’: champanhe, qualquer que seja, seria ‘coisa de rico’.)
Para arrematar, quando o jogador reuniu a imprensa para comunicar sua decisão, O Dia resolveu associar a frase ‘dar um tempo na carreira’ à negativa do uso de drogas.
Que não se perca por falta de sutileza. Por falta de criatividade, talvez: não faz muito tempo, a mesma frase foi manchete do veículo mais ‘popular’ da casa, o Meia Hora, quando noticiou o afastamento de um ator da Globo para se tratar da dependência de cocaína.
Seria excessivo citar a enxurrada de lugares-comuns e jogos de palavras tão lamentavelmente previsíveis no jornalismo, sobretudo no jornalismo esportivo: ‘a queda do imperador’, ‘o imperador nos gramados é um rei da confusão’, ‘o imperador vê seu castelo ruir’, ‘joga para o alto a coroa’… Justiça seja feita, imbatível mesmo foi o trocadilho cometido pelo Globo, em matéria retrospectiva que definia os muitos percalços na vida e na carreira do atacante como ‘a saga onde impera a dor’.
É possível recuperar a dignidade
Prisioneiro de estereótipos, esse jornalismo está condenado à simplificação da lógica binária, onde não cabe qualquer complexidade.
Na entrevista coletiva em que anunciou sua decisão de ‘dar um tempo’, Adriano disse que não estava feliz e que queria voltar a viver em seu país, junto dos amigos e da família. Em suma: voltar às raízes. Contradição absoluta no mundo da elite do futebol, que expressa com rara clareza a ideologia da desterritorialização: ali tudo se negocia, inclusive a nacionalidade. Quem pretende penetrar nesse mundo deve abrir mão de toda esperança de cultivo à identidade.
Então o Estadão anota: ‘Adriano troca a Inter de Milão pelo Complexo do Alemão’. A Veja aponta o ‘milionário do morro’ e repete: ‘Ele prefere a favela a Milão’.
A favela é a Vila Cruzeiro, onde morreu Tim Lopes em 2002 e onde a polícia fez uma megaoperação de mais de três meses em 2007, matando oficialmente 19 pessoas em um só dia.
Nessa favela nasceu o menino que ganhou o apelido de Pipoca por causa do lanche que a avó trazia para a garotada que jogava bola no campo de terra. Esse menino despontou para o estrelato, mas agora renega a engrenagem que o transformou em ‘imperador’ e diz que quer voltar para casa. Expõe-se como homem comum, e isso, no mundo de hoje, significa transformar-se em inseto: nas palavras de Hélio Pellegrino, é ‘dizer `basta!´ a uma estrutura social que, alienando-nos, exige de nós que sejamos, não apenas alienados, mas totalmente insensíveis e inconscientes com relação à distorção alienadora’ que nos é imposta.
Reduzido a um inseto, Adriano nos mostra, mesmo sem saber, que é possível recuperar a dignidade.
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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)