Publicado originalmente pelo objETHOS.
Na semana que passou alguns temas deram origem a uma quantidade volumosa de material “jornalístico” levado ao público pela mídia nacional, oferecendo informações, análises, opiniões, questionamentos, sob as mais variadas formas aos consumidores dos produtos elaborados pelas principais empresas de comunicação.
Por meio da profusão de reportagens e outros tipos de matérias jornalísticas, foi possível que tomássemos conhecimento, por exemplo, de acontecimentos terríveis como o massacre na escola de Suzano, a prisão dos supostos assassinos da emblemática Marielle, do sapiente julgamento do STF a respeito dos crimes de corrupção associados a irregularidades eleitorais, o aumento da violência doméstica, o conflito político e embate pelo poder na Venezuela.
Enfim, com o acesso a tudo o que a chamada imprensa nos oferece como fruto de um trabalho profissional podemos refletir se estamos sendo devidamente informados de modo efetivo ou, como aponta Leão Serva, somos peças integrantes de um processo de desinformação.
Cada vez mais temos à nossa disposição uma prática jornalística que pode utilizar uma infinidade de recursos tecnológicos para produzir e difundir informação socialmente útil. No entanto, apesar do emprego de técnicas e tecnologias eficientes e sofisticadas para atingir os objetivos mercadológicos do jornalismo em seus aspectos empresariais, constata-se que o público em geral é mal informado, quando não desinformado.
Conforme observa Serva (2001 p. 125) ao se prolongar no tempo uma noticia apresenta contração informativa, mas quando ocorrer seu desfecho este receberá tratamento destacado. Essa situação corresponde a um procedimento que o autor chama de “redução paulatina até explodir novamente como surpresa”.
Segundo ele, por isso “o jornalismo, tal como está disposto nos meios de comunicação atuais, pratica ao mesmo tempo técnicas de informação e de desinformação (…). Informa, mas necessariamente desinforma também”.
Dessa maneira, ainda de acordo com o autor, os relatos a respeito dos fatos produzidos pelo jornalismo atual retiram esses fatos de sua organicidade ou de seu lugar na sucessão dos acontecimentos, negando ao público os instrumentos necessários para a compreensão mais completa dos mesmos.
O entendimento acerca de como é feito o jornalismo na contemporaneidade passa pelo conhecimento mais aprofundado possível dessa atividade profissional, suas técnicas específicas de trabalho com a informação, suas idiossincrasias, e a estreita relação que deveria manter com os princípios basilares de uma sociedade que busca garantir a seus integrantes uma vida em consonância com valores éticos, democráticos e cidadãos.
Nessa perspectiva torna-se imprescindível atentar para o modo de fazer jornalismo hoje presente em nosso meio.
O exercício do jornalismo exige que determinadas escolhas sejam feitas pelos profissionais em seu oficio, entre elas a classificação dos fatos de acordo com a importância que pode ser atribuída a cada um deles. Consequentemente, o jornalismo praticado não consegue abarcar tudo o que ocorre e tenha relevância, e o que fica de fora do processo produtivo é tornado praticamente invisível e desconhecido da maioria das pessoas.
Acontecimentos muitas vezes são ignorados pela imprensa mesmo atendendo aos critérios de noticiabilidade tradicionalmente elencados como argumento para publicação das notícias. Entre eles destaca-se o significado social do fato, ou importância que apresenta para a sociedade, o interesse do público pelo assunto e também a relevância atribuída pelos próprios jornalistas.
Estudiosos reconhecidos do jornalismo associam critérios de noticiabilidade com conceitos referentes aos denominados valores notícia. Ao tratar dessa questão Souza (2004, p.112) indica que se privilegiam fatores como “o extraordinário, o insólito, a atualidade, a referência a pessoas de elite, a transgressão, as guerras, as tragédias e a morte”.
Tragédias e morte
Surgem aí duas palavras inequívocas a justificar a presença quase cotidiana em noticiários de acontecimentos dantescos. O que aconteceu na escola pública Professor Raul Ribas, em Suzano-SP obviamente teria de ser noticiado e mostrado, ainda mais se forem observados os critérios usados para definir a seleção de ocorrências pautadas para uma edição midiática.
O que pode e deve ser questionado com muita veemência e vigor, é a forma com que as noticias foram veiculadas, principalmente pelo programa noticioso que ainda detém os maiores índices de audiência da televisão brasileira.
Na escalada, ou seja, na abertura do noticiário — momento em que são apresentadas as manchetes com exposição das principais notícias, do Jornal Nacional de 13 de março dia em que houve o massacre, palavras desnecessárias, e com ênfase que se iguala à própria dramaticidade do fato, marcaram as falas dos âncoras.
O apresentador começa afirmando: “A covardia de dois assassinos enoja o país”. Na sequência a apresentadora diz: “Depois de matarem a tiros o tio de um deles, invadem uma escola na grande São Paulo para atacar alunos e funcionários”. Em complemento, o apresentador destaca: “atiram a esmo contra estudantes desprotegidos”.
E novamente a apresentadora salienta: “usam um machado contra os que tentavam fugir”. E finalizando a chamada, o apresentador conclui: “e se matam, depois de um banho de sangue”.
A terceira fala, proferida pelo apresentador e a pronunciada em seguida pela apresentadora são cobertas por imagens impactantes de um dos criminosos atirando contra um grupo de pessoas e outras que mostram vários alunos correndo em fuga. O fecho é com imagem do âncora na bancada emitindo a última frase. Tudo isso em apenas oito segundos, pois outra chamada referente a assunto internacional entra logo depois.
A forma com que é apresentada a notícia dá margens à indignação. Informações são relegadas a um segundo plano em prol de uma abordagem que oferece preferência ao sensacionalismo. Termos como covardia e enoja não trazem em si elementos informativos consistentes, são qualificativos que podem perfeitamente integrar uma peça jornalística, mas não com destaque maior que a informação pura e simples.
Ao mesmo tempo são enfatizados nessa pequena narrativa aspectos informativos complementares, que ocupam lugar de elementos principais no que tange à informação necessária, mas que da maneira como foram colocados conferem alto grau de dramaticidade ao conteúdo, como se o fato sem os apelos de produção empregados já não fosse dramático o suficiente.
A reportagem, na mesma edição do telejornal apresenta outros componentes pretensamente jornalísticos que ratificam a opção sensacionalista e exploradora da desgraça em busca de audiência, a qual tem caracterizado esse programa telejornalístico ultimamente.
Na cabeça de VT, texto que serve como introdução para a entrada do material gravado da reportagem, o apresentador informa: “dois assassinos mataram oito pessoas, feriram mais onze e se mataram hoje de manhã em Suzano-SP. O repórter Cesar Galvão descreve toda a ação covarde dos assassinos”.
Vale apontar que as informações essenciais contidas nesse introito poderiam ter sido divulgadas já na escalada, em vez da enfática adjetivação que as substituiu no inicio do telejornal, sem prejuízo à sua utilização novamente nessa parte do noticiário.
Iniciando a reportagem aparecem imagens de um ambiente aberto que se assemelha a um pátio escolar e apenas a voz do repórter descrevendo: “as imagens, gravadas por uma câmera da escola, não deixam dúvidas da monstruosidade da ação dos dois assassinos. O primeiro entra calmamente, tira a arma da cintura e, sem piedade, atira a queima roupa num grupo de pessoas sem chance de defesa. Dezesseis segundos depois, o comparsa dele chega e, ao ver as vítimas caídas no chão, desfere contra elas vários golpes brutais, usando um machado. Em pânico, os estudantes correm desesperados e são golpeados por machadadas”.
Nesse momento, poucos segundos antes da última frase, são usados recursos de edição, colocando certas imagens dentro de um círculo como se fosse uma lente de aumento para destacar a violência empregada pelo criminoso.
A matéria prossegue agora sem a voz do repórter que é substituída pelo som ambiente preponderando os gritos desesperados de crianças, mas foi tomado o cuidado de desfocar as imagens, mesmo que isso não tenha nenhum efeito diante do terror manifesto pelo que se ouvia. Prosseguiram passando as cenas de fuga e o áudio com os gritos ao fundo e entra nova fala do repórter: ”em meio aos corpos dos colegas mortos”.
A continuação da reportagem emenda com outras imagens de câmeras instaladas na vizinhança da escola, que cobrem nova fala do repórter: “as imagens gravadas pelas câmeras de um vizinho da escola registraram o momento em que outros alunos pulavam o muro para escapar”.
Pelo exposto nessa diminuta exemplificação, que se repete ao longo de todo o material jornalístico, fica evidente a opção por um tratamento no mínimo inadequado no enfoque da noticia, priorizando peculiaridades que favorecem expressão sensacionalista conferida no conjunto das peças jornalísticas.
Essa seleção se verifica em diversos aspectos presentes na reportagem, entre outros no texto falado pelo repórter. Ou será que se pode admitir que assassinato em massa seja algo normal? Portanto totalmente dispensável o destaque à monstruosidade do ato praticado.
Outro ponto que reafirma a intenção de sensacionalizar a abordagem pode ser identificado quando é dito que um dos criminosos atira sem piedade à queima roupa em um grupo de pessoas. Será que é possível imaginar que alguém atire em outra pessoa a queima roupa com piedade?
Também podemos considerar o uso de imagens, mesmo que fora de foco, de alunos e funcionários em pânico, fugindo à procura de abrigo, junto com o áudio onde são ouvidos gritos de pavor como algo totalmente fora de propósito nos parâmetros de um jornalismo que respeite minimamente os pressupostos éticos da profissão e valorize a dignidade de qualquer cidadão seja em que circunstancia for.
A cobertura integral desse terrível acontecimento realizada pelas equipes atuantes no telejornal JN, a partir de sua ocorrência e nos dias posteriores foi marcada preponderantemente por erros e equívocos os mais variados, dos quais os apontados acima são apenas uma parte.
Além desses, foram feitas entrevistas e colocadas no ar sonoras com adolescentes estudantes da escola que escaparam da morte sem nem mesmo tomar o cuidado de não identifica-los. Também não houve pudor em explorar personagens como as mães de algumas vítimas, de preferência em closes, e veiculando expressões de dor e de choro.
Esse foi apenas mais um episódio com atuação marcante de um tipo de jornalismo que parece estar se tornando mais habitual naqueles que até algum tempo podiam ser qualificados como espaços mais ou menos sérios e aparentemente éticos, em contraposição aos programas autointitulados como jornalísticos, mas que se atém aos temas policialescos e grotescos.
O nosso 13 de março demonstrou que os noticiários de televisão, em especial na maior rede do país, se tornam progressivamente mais caricatos, pela inobservância do que deveria ser mais caro aos profissionais do verdadeiro jornalismo, a defesa intransigente da dignidade humana.
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João Somma Neto é professor do Curso de Jornalismo da UFPR e pesquisador associado do objETHOS
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Referências:
SERVA, Leão. Jornalismo e Desinformação. São Paulo. Ed. SENAC, 2001.
SOUZA, Jorge Pedro. Introdução à análise do discurso jornalístico impresso. Florianópolis: Ed. Letras Contemporâneas, 2004.