Há cinquenta e cinco anos, mais precisamente na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964, começava a ser escrita uma das páginas mais tristes da história brasileira. Trata-se do golpe militar que, a partir da deposição do então presidente João Goulart, mergulhou o país em um regime ditatorial que vigorou até 1985.
Hoje, com o devido distanciamento temporal, sabemos que o principal argumento para o golpe militar — a “ameaça comunista” — jamais existiu. O governo João Goulart esteve bem distante de fomentar uma revolução marxista no Brasil. Na época, o que havia de fato era uma elite que não concordava com as políticas econômicas nacionalistas de Jango e uma classe média conservadora temerosa de que as chamadas “reformas de base” propostas pelo governo ameaçassem os seus históricos privilégios classicistas ou pudessem promover a ascensão social dos estratos mais pobres da população (qualquer semelhança com a atual classe média que bateu panela durante os pronunciamentos de Dilma Rousseff não é mera coincidência). Dessa associação entre elite e classe média veio a pressão social pela queda de João Goulart.
Já no tocante à geopolítica global, não restam dúvidas de que o golpe de 1964 foi patrocinado pelos Estados Unidos como uma forma de manter o Brasil alinhado aos seus interesses (basta lembrar que estávamos no contexto da chamada “Guerra Fria”, quando estadunidenses e soviéticos disputavam esferas de influência em todo o planeta).
Por sua vez, a grande mídia brasileira, durante o período ditatorial, sempre esteve ao lado dos que estavam no poder. Primeiramente com uma intensa campanha de difamação ao governo Jango, o que veio a atrair o apoio de parte da população para o movimento golpista. Nos dias subsequentes ao golpe, jornais como O Globo e Tribuna da Imprensa publicaram eufóricos editoriais que exaltavam os “bravos militares” que “salvaram” o Brasil do “perigo comunista”.
Concretizada a ditadura, os grandes veículos de comunicação não noticiavam as atrocidades cometidas pelos militares. Nesse sentido, uma frase do general-presidente Emilio Garrastazu Médici, nos anos 1970, sobre o Jornal Nacional é emblemática: “Sinto-me feliz todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante após um dia de trabalho”.
Nos últimos anos do regime, quando multidões foram às ruas para pedir a volta da democracia, a mídia hegemônica fez questão de ocultar as primeiras mobilizações que reivindicavam por eleições diretas para presidente. Na época, a Rede Globo chegou a noticiar um comício do movimento “Diretas Já” na Praça da Sé como se fosse somente mais um evento em comemoração pelo aniversário da cidade de São Paulo.
Recentemente, alguns órgãos da imprensa, como as Organizações Globo, produziram editoriais que consideraram equivocado o apoio ao golpe de 1964. No entanto, os ostensivos e seletivos ataques globais ao governo Dilma Rousseff e o posterior apoio à ruptura democrática que conduziu Michel Temer à presidência da República demonstram que o Grupo Globo ainda está bastante distante de ser qualificado como “democrático”. Quem sabe, em um futuro longínquo, eles produzam outro editorial se retratando sobre mais esse erro histórico?
Já outros veículos da imprensa hegemônica ainda apresentam certa resistência em utilizar a palavra “ditadura” para se referir ao regime militar. Através de um editorial, a Folha de São Paulo, por exemplo, se referiu a este período como “ditabranda”, pois, de acordo com o periódico, o regime partiu de uma ruptura institucional, mas depois preservou ou instituiu formas controladas de disputa política e acesso à Justiça.
Por outro lado, em tempos de “pós-verdades” nas redes sociais, “politicamente incorreto” e “revisionismos históricos” sem qualquer critério de cientificidade, há várias correntes de pensamento que negam a existência do golpe de 1964, qualificando-o como “revolução” e, não obstante, buscam minimizar as atrocidades cometidas pelo regime militar — como a censura a manifestações artísticas, perseguições a trabalhadores ou as torturas de opositores (prática, inclusive, exaltada por alguns homens público em pleno Congresso Nacional). Outro “argumento” dos defensores da ditadura aponta que durante os governos militares não havia corrupção, hipótese facilmente refutável pelo simples fato de que, na época, qualquer ato ilícito cometido por algum homem público não era divulgado.
Também é importante frisar que os resquícios do regime ditatorial ainda permanecem em nossa sociedade, seja na violência desmedida de alguns policiais militares, na vergonhosa concentração de canais de televisão nas mãos de poucas famílias ou em propostas que buscam calar os professores em sala de aula (como o projeto Escola Sem Partido).
Enquanto em países como Chile e Argentina muitos crimes cometidos durante os regimes ditatoriais foram devidamente punidos; no Brasil, apesar da criação da chamada “Comissão da Verdade”, a maioria das violações aos direitos humanos realizadas pelo Estado durante a ditadura não chegaram sequer ao conhecimento do grande público. Enfim, passadas cinco décadas e meia, 1964 é um fantasma que a sociedade brasileira ainda precisa exorcizar, pois lembrando as palavras de Edmund Burke, “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do PROEJA do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.