Publicado originalmente pelo Balaio do Kotscho.
“Os dias não andam fáceis. Defensores da ditadura e do golpe se fazem agora de paladinos da liberdade de expressão. Em alguns casos, são os mesmos que mandam recados para ministros do Supremo: `Não ousem soltar Lula´” (Reinaldo Azevedo, na Folha).
No Brasil virado de ponta cabeça, um dia nunca é igual ao outro, mas todos são esquizofrênicos.
O que valia num dia já não vale no outro, canalhas viram heróis, grandes defensores dos direitos humanos e da liberdade de expressão, as leis mudam de acordo com os interesses e o humor de quem julga, o que era proibido está liberado e vice-versa.
Até Bolsonaro agora virou defensor da imprensa livre e das terras indígenas e o general Mourão, que já pregou o golpe, apresenta-se folgazão como poder moderador.
No mesmo dia, após um festival de lambanças jurídicas, quase entrando em autocombustão, o STF de Toffoli & Moraes tirou a censura de dois sites bolsonaristas e liberou Lula para dar entrevistas.
Agora, o ex-presidente pode falar o que quiser porque a eleição já passou, Bolsonaro ganhou e a mordaça de Luiz Fux, confirmada por Toffoli, já não tem mais serventia.
Aonde estavam todos eles, que agora se sentem tão ofendidos com as críticas ao STF, quando o linchamento moral tomou conta das redes sociais no ano passado, com kits gay e mamadeiras de piroca, no vale tudo que decidiu a eleição depois da facada misteriosa e da prisão de Lula?
Os mesmos paladinos que agora saíram em defesa dos dois sites irrelevantes, que pouca gente conhecia, não se manifestaram quando, numa canetada, Fux proibiu os jornalistas Florestan Fernandes Junior e Mônica Bergamo de entrevistarem Lula às vésperas da eleição.
O cinismo e a hipocrisia dessa gente não tem limites ao ver um microfone na frente para falar o que os donos da mídia querem ouvir.
Estão pouco se lixando para os ataques diários aos direitos fundamentais.
Não se interessam pelo acobertamento dos crimes praticados pelas milícias.
Acham normal, apenas “fatalidade”, uma blitz do Exército matar com 80 tiros um músico que estava no carro com a família e o catador que tentou salvá-lo.
Só lhes interessa agora a reforma da Previdência e a privatização da Petrobras, o resto que se dane.
Mais do que os discursos desconexos do capitão reformado, assustam-me os comentários que leio nas redes sociais, em que se comemora o suicídio de Alan Garcia e se prega a morte dos adversários políticos.
“Nesse terreno, se constrói a casa de tolerância do malandro com aspirações autocráticas”, escreve Vinicius Torres Freire, em sua coluna sobre o momento dramático que o país vive: “Líderes do país promovem conflitos irresponsáveis; baderna institucional aumenta”.
As pessoas nas ruas e nos botecos da vida já discutem, com a maior naturalidade, se vamos ter golpe, autogolpe, renúncia, impeachment ou parlamentarismo, como se estivessem falando do jogo de domingo.
Enquanto isso, a economia afunda e caminhamos para a anarquia generalizada, com os três poderes se desmoralizando e milhões de desempregados vivendo ao relento.
Alguns jornalistas até ganham medalhas do poder no Dia do Exército, mas a maioria está sem emprego e sem espaço para contar o que está acontecendo.
Liberdade de imprensa? Aonde? Para quem?
“Brasil cai 3 posições em ranking mundial da liberdade de imprensa”, informa a Folha desta sexta-feira do feriadão.
Estamos agora num honroso 105º lugar no relatório divulgado pela organização Repórteres sem Fronteiras sobre a situação encontrada em 180 países.
Para nosso consolo, ainda estamos longe do Turcomenistão, ex-república soviética que ocupa a lanterna.
Se depender dos valentes defensores da liberdade de expressão que apareceram nos últimos dias, logo chegaremos lá.
Vida que segue.
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Ricardo Kotscho é jornalista.