Publicado originalmente por objETHOS.
Carros que voam, cura de doenças, comida em drágeas. Ou apocalipses, guerras nucleares, extinção da vida na Terra. Essas são algumas imagens das histórias utópicas ou distópicas já contadas, escritas ou filmadas sobre o que seria o futuro. Em tempos de esperança reduzida, em que pouco se vê além da poeira levantada pela vida agitada deste momento, as distopias têm voltado a ser mais lembradas.
Obras como 1984, de George Orwell, são citadas em matérias, em análises e são indicadas em bibliografias para nos ajudar a compreender as formas de controle da sociedade e a pensar em como o mundo pode ser no futuro. Parece que com mais cara de passado do que de futuro. No presente, aparecem os zumbis, as histórias dos mortos-vivos, que nem se vão nos deixando em paz e nem voltam mesmo à vida como um milagre que poderia trazer esperanças de renovação. Estão ali, meio verdes, meio sangue, meio terror e meio humor.
Nessa leitura que nos leva a pensar mais em distopias, num novo mundo barroco e na falta de futuro de luz e esperança, apesar das resistências, o passado acaba sendo um ideal mais interessante e feliz do que o futuro. E aí vemos diversos agendamentos, inclusive como pauta do Jornalismo e da sociedade de forma geral. O período da ditadura militar brasileira passa a ser idolatrado, defendido e desejado, quase festejado.
As disputas da Guerra Fria são evocadas, numa busca pela simplificação, pela localização do mocinho e do bandido, do bem e do mal, do certo e do errado. Em busca do que atacar e defender. Até as décadas que antecedem e sucedem a Segunda Guerra Mundial entraram na disputa, têm sido citadas, defendidas, atacadas, recontadas para serem usadas como narrativas de um mundo ideal ou ideal para ser repelido.
No último livro que deixou para ser publicado, Retrotopia, Zygmunt Bauman se debruçou sobre esse movimento contemporâneo de busca de soluções para um mundo melhor não mais num futuro a ser construído, mas em ideias e experiências do passado. Nacionalismos exacerbados, fechamentos de fronteiras retornam e se fortalecem depois de um momento de apagamento de fronteiras, da rede mundial conectar pessoas e as migrações se transformarem em movimentações, idas e vindas. Depois de nos falar sobre a modernidade líquida, os amores líquidos e a vida líquida, que se desfazem nem sendo sólidos, o autor nos deixou para pensar reflexões sobre esse desejo atual de glorificar soluções e experiências do passado.
Uma certa nostalgia aparece em diversas áreas na mesma medida em que o ataque à História também aparece. E a onda, sobretudo, é para glorificar simplificando fases, experiências históricas e sociais, atores e lutas. Não vi ainda um desejo por repetir de alguma maneira as extravagâncias e avanços da década de 1920 e sim retornos aos anos de 1950 ou à ditadura de 1964. Essa volta ao passado tem certo cheiro de mofo. Não parece acontecer por motivações benjaminianas de alguma filiação à fileira de vencidos, mas a uma repetição da História como farsa.
Onde o Jornalismo entra nesse movimento? As fake news nos fizeram criar novas práticas e dar destaque a aspectos que eram parte do trabalho jornalístico, como a checagem das notícias, criando até agências para se ocuparem só disso. Sinal dos tempos, resultado de novas formas de produzir, necessidades da era digital, onde nem tudo é o que parece. Me parece razoável refletir sobre a produção de reportagens que buscam explicar algum aspecto da História, um acontecimento do passado, uma personagem que já teve impacto e que hoje precisa retornar na produção jornalística para esclarecer, dar contexto ou explicar algum assunto que está sendo tratado hoje. E não estou falando apenas de marcar efemérides.
O Jornalismo sempre fez retornos ao passado para comemorar datas, lembrar de acontecimentos históricos. Mesmo me valendo de impressões e não de uma estatística mais precisa sobre o aumento dessas pautas de explicações ou retornos ao passado, me parece que tanto essas reportagens têm crescido em número quanto os seus agendamentos têm ligação com este pensamento de futuro baseado em um desejo pelo passado. Não que o discurso jornalístico esteja sempre contribuindo para esta glorificação. Seria precipitado dizer isso e, em muitos casos, também parece ser o oposto. O Jornalismo, em busca de seu novo papel no cenário Pós-Industrial, que alterou sua forma de produção, sua motivação e seu protagonismo, pode também estar desenvolvendo uma nova atribuição.
Com a possibilidade de aprofundar temas e dar contexto, atribuições contemporâneas da área que vão além do newsmagazine das últimas décadas e do final dos tempos de preponderância do impresso, o Jornalismo se coloca como um novo sujeito a falar da História. Na busca por essas pautas e nessa relação com a História e a Historiografia, o Jornalismo revisita momentos, personagens, desloca olhares, questiona inclusive discursos que buscam glorificar o passado para imaginar um futuro ao invés de construí-lo.
Nos cem anos da Bauhaus, a escola que revolucionou a arte e a arquitetura no século XX e foi fechada pelos nazistas, reportagens botam em contexto as disputas que já ocorreram em torno da cultura e das representações da sociedade. Em geral, jornais como El País Brasil, DW e BBC Brasil, que estão atuando com sites em português, têm pautado esses temas em maior medida, mas em alguns momentos também portais de jornais brasileiros como Estadão e O Globo. Matérias sobre heroínas brasileiras mexeram com a lista conhecida de heróis masculinos; declarações sobre nazismo e holocausto fizeram aparecer reportagens sobre as últimas testemunhas vivas dos extermínios da Segunda Guerra, a origem do termo holocausto; declarações que tentavam diminuir a importância de figuras como Chico Mendes foram respondidas com reportagens sobre o ativista, o seu assassinato e a causa que defendia.
Sabidamente defensor da Amazônia e dos povos da floresta, Chico Mendes foi assassinado em 1988 por fazendeiros que se opunham às suas ações como ambientalista e seringueiro. Naquela época, a opinião pública soube do assassinato, se posicionou na condenação da morte violenta e até os livros didáticos o colocaram como personagem importante para a causa ambiental e na disputa de terras no Brasil. Mas o momento atual de reescrita orwelliana da História chamou o Jornalismo a revisitar o tema, o acontecimento e a reposicionar Chico Mendes como ativista e vítima da violência política. O Nexo Jornal fez uma reportagem sobre o legado do ativista que conta da origem à morte.
São diversos momentos, temas e pautas. Importante continuar observando esta tendência do Jornalismo no Brasil hoje, as possibilidades que estão sendo exploradas pelos veículos e repórteres e como o Jornalismo se articula com esse desejo de construir um futuro baseado no passado e com as possibilidades de construir a memória revisitando acontecimentos e, sobretudo, produzindo pautas que sacudam esse momento retrô.
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Vanessa Pedro é professora de jornalismo da Unisul e pesquisadora associada do objETHOS.