“Pois agora, lá fora, o Brasil é uma ilha, a milhas e milhas de qualquer lugar”, cantava a banda “Engenheiros do Hawaii” ainda em tempos de pré-globalização.
Para entender o atual momento político, um olhar para o passado recente se faz imprescindível para que o crasso antagonismo do zeitgeist Brasil 2019 fique nítido.
Com a descoberta do pré-sal, em 2007, o Brasil se tornava um global player e, como prescreve o jargão usado na mídia alemã, entrou para o “sinteco político”, um prestigioso clube daqueles que ditam e alinhavam a ordem mundial. A ratificação desse cenário se deu com o encontro do ex-presidente Lula com o ex-presidente americano Barack Obama, em 2009, na Cúpula do G8, em Londres. O então morador da Casa Branca se dirigiu ao grupo de quatro políticos ao qual Lula acabara de se juntar. Obama, enquanto cumprimentava os quatro chefes de estado, mirou Lula e disse :”Eu adoro esse cara. Ele é o político mais famoso da terra, talvez porque seja boa pinta”. Esse encontro marcaria o aval do Brasil, já como potência econômica, para um upgrade político-diplomático sem precedentes, e que teve inúmeros desdobramentos nos anos seguintes.
Sem falar inglês, mas com (seu mosqueteiro) o ministro Celso Amorim sempre ao lado, Lula disfarçou a surpresa e em fração de segundos entendeu como tirar capital daquele encontro. Nele, o ex-presidente brasileiro havia entrado para o grupo exclusivo, sendo apresentado pelo mais influente deles, incluindo bem-vindos desdobramentos em credibilidade e legitimidade. Sem perder tempo, Lula pegou no braço de Obama e o puxou pro seu lado, formando ali (da perspectiva de dinâmica de grupo) uma dobradinha: eram Lula e Obama, e o resto.
Dez anos depois, o presidente Jair Bolsonaro (PSL), no contexto do Fórum Econômico de Davos, onde se encontra a elite financeira mundial, foi filmado almoçando num bandejão da rede suíça de supermercados Migros. O que para seus eleitores pode parecer um gesto de simplicidade e a ingênua crença de que “ele é um de nós” foi o maior atestado de pobreza no âmbito da política externa que o Brasil pôde exibir para o mundo.
Sob o governo Lula e a política externa executada pelo brilhante diplomata Celso Amorim, o Brasil saía da prateleira do “exótico” e do estigma de ser somente o país do futebol e do carnaval e de lindas praias.
Ratificando seu lugar no “sinteco político”, na conferência sobre o clima em Copenhague, em 2009, enquanto a comunidade internacional não encontrava um consenso e o evento ameaçava ser um fracasso, ignorando quaisquer protocolos, Lula chamou Obama para conversar “a quatro olhos”, como prescreve a expressão em alemão, e elevou o Brasil ao papel de mediator. Meses depois, ele chegava em Teerã para convencer o então líder Ahmadinejad a assinar o acordo nuclear, possibilitando ao hardliner livrar-se do papel do lobo mau da comunidade internacional. “Eu não saio daqui antes de você assinar esse papel” contou Lula em 2012, em Berlim, em palestra na Fundação Friedrich-Ebert (ligada aos social-democratas).
Brasil 2019
Dez anos se passaram. Bem ao contrário da “democracia virtuosa” atestada pelo ministro da economia, Paulo Guedes, em recente conversa com jornalistas na GloboNews, o Brasil é um paciente em estado de convulsão, alternado com o estado de coma induzido e respirando por aparelhos.
Europa e o extremismo de direita
Decerto que a Europa se vê, desde 2014, confrontada com a ascensão vertiginosa da direita radical e da extrema-direita: Polônia, Hungria, Alemanha, Itália.
Na noite de domingo, dia 21, Wolodymyr Selensky (41), um comediante, foi eleito o presidente da Ucrânia com 73,2% de aprovação de votos.
No país governado por Angela Merkel, o partido “Alternativa para a Alemanha” (AfD, na sigla), extremista de direita, mudou o espectro político-partidário do país e mantém 93 deputados no Parlamento.
Há inúmeros motivos para que a Europa esteja focada no próprio umbigo. Mesmo assim, o ostracismo midiático e, com ele, a visível perda de relevância política do Brasil no âmbito internacional, com especial gosto amargo da perspectiva da Alemanha, mostra-se alarmante. Os desdobramentos são imprevisíveis.
Em 2012, a ex-presidenta Dilma Rousseff e a chanceler Merkel abriam juntas a Feira de Hanôver, que tinha o Brasil como “país parceiro”. Nesse mesmo ano, Lula foi convidado pelo sindicato de metalúrgicos, IG Metall, para seu congresso internacional em Berlim, onde discursou durante 45 minutos sobre a situação do Brasil, do mundo e da Europa. O Brasil ainda continuava no “sinteco político”.
Nova Ordem Mundial
Nos EUA, e graças à ajuda da Rússia, habita na Casa Branca o presidente mais imprevisível das últimas décadas, delineando as pilastras da Nova Ordem Mundial: com a China, Brasil, com a UE, com o México. Porém, ao contrário do Brasil, a democracia americana é experiente, arraigada, seus instrumentos no Legislativo e no Judiciário funcionam.
Hoje, o ex-presidente Lula se encontra preso no prédio da PF de Curitiba: sua influência política foi, sistematicamente, estrangulada. Sem uma oposição de esquerda emancipada do PT, o Gigante Terra Brasilis se perdeu entre o ódio e o analfabetismo político e hoje se vê confrontado com imagens de um presidente egocêntrico que um dia aparece pescando em área proibida (2012) e que, anos depois, exonera o funcionário que na época, o multou. Pode-se também vê-lo andando de motocicleta durante suas férias de Páscoa, ferindo as normas de segurança concernentes ao uso do capacete, relativizando o Holocausto ou irritando e constrangendo autoridades palestinas com o risco de segurança que isso pode resultar para o Brasil. A lista de micos diplomáticos do atual governo é longa depois de “somente” 100 dias de governo.
Ostracismo midiático
Nos primeiros anos do novo século, a imprensa alemã mudava sua agenda e pautas, focando frequentemente no Brasil. Os correspondentes da TV aberta ZDF, Frank Buchwald e, depois, Andreas Wunn, viajavam o Brasil inteiro à procura de pautas e eram presenças constantes no principal noticiário do canal, o jornal Heute.
Em 2019, o Brasil despencou num ostracismo midiático especialmente perigoso na época do pós-globalizado. As novas tecnologias aproximaram o Brasil do mundo, mas o novo governo faz exatamente o contrário.
Enquanto no Brasil muitos veículos de comunicação não mostravam cojones para dar nomes aos bois e caracterizar o PSL e o discurso de Jair Bolsonaro como de extrema direita, racista e homofóbico, refugiando-se em pleonasmos e menções de caráter errôneo e pueril, o chamando de “polêmico”, a imprensa alemã é implacável ao se referir ao atual presidente do Brasil. E de mais a mais: polêmica não exibe uma ideologia, mas uma retórica. O discurso racista e de palanque continua e a maioria dos veículos de comunicação no Brasil capitulou por medo de represália. São poucas as exceções.
É preciso dar nome aos bois
Logo no dia seguinte à eleição de Jair Bolsonaro, o conglomerado de emissoras abertas ARD publicou em seu portal um meticuloso artigo explicando porque o denominam extremista de direita, e não radical de direita — no primeiro, a ideologia se encontra fora de parâmetros constitucionais. Depois da intensidade de pautas resultantes do processo eleitoral e da posse, o Brasil sumiu do noticiário. A perda de relevância política é só uma consequência natural, e está só começando.
Mudança de paradigma
Da perspectiva europeia (por vezes eurocentrista), os brasileiros eram percebidos como um povo alegre, liberal nos costumes, tolerante e solícito. Antes do desastre do 7 x 1, também como potência futebolística, mas isso já se tornou coisa do passado.
A notícia de que ganhou a eleição presidencial um homem que relativiza o Holocausto e que está trocando a riqueza da Floresta Amazônica por divisas são dois temas que causaram mais consternação na Alemanha.
O setor cultural, especialmente os teatros alemães, organizam eventos em forma de palestra, discussão ou think-tanks para tentar digerir o que acontece no Brasil, mas o choque ainda é muito grande, visível até mesmo em fundações que fazem abrangente trabalho de conscientização política, algumas delas atuantes há décadas no Brasil: a Fundação Konrad Adenauer (RJ e CE), ligada ao CDU de Merkel, a Fundação Friedrich-Ebert (SP), ligada aos social-democratas, e a Fund. Friedrich-Böll (RJ), ligada aos Verdes.
Atuante como jornalista há anos na capital, sempre tive o sorriso solícito de meus colegas quando o tema era Brasil. Hoje, em qualquer lugar que vou, constato um semblante de consternação e ou de compaixão, seguido pela pergunta: “O que está acontecendo no Brasil?”.
Meu colega holandês Rob Salverg, correspondente do The Telegraph, me enviou uma caricatura veiculada em seu jornal: uma sandália Havaianas que, ao invés de bandeirinhas do Brasil, exibia o símbolos da suástica.
Imagem do Brasil “lá fora”
No programa “Central News”, da GloboNews, o jornalista Merval Pereira, exemplificando com a notícia do cancelamento da cerimônia em homenagem a Bolsonaro em Nova York, alfinetou: “A imagem do Brasil no exterior é péssima”. “Como o senhor acha que essa imagem do Brasil, do presidente Bolsonaro, pode afetar o ânimos dos investidores para voltarem ao Brasil?”, indagou. Guedes, visivelmente desconcertado, e depois de se ajeitar na poltrona do estúdio, mandou: “Nós vamos chegar lá”.
O ministro da Economia, que mais parecia um aluno em prova oral cercado por uma banca examinadora, apelou para o contra-ataque, alegando que foi o “establishment, os que perderam a eleição” que arruinaram a imagem do Brasil no exterior.
Ratificando a atual política de governo, “Brasil acima de tudo”, e com a postura de olhar para o próprio umbigo, com voz orgulhosa revelou: “Eu não tive pressa de ir lá pra fora. Sabe por que? O voto estava aqui dentro, não estava lá fora. Os votos para a aprovação da reforma da Previdência estão também aqui dentro, no Congresso. Lá fora não é prioridade. Primeiro, temos que fazer a entrega aqui dentro, depois vamos lá fora”.
A postura do ministro é sintomática para todo o gabinete do atual governo. A política externa brasileira sucumbiu em uma mélange de ignorância, entreguismo e síndrome de vira-lata.
Entreguismo e subserviência
A postura de imprevisibilidade do atual governo e dos membros do gabinete deixa a mídia e o governo alemão em estado de alerta. A descontinuidade na interação entre os dois países é um fator decisivo na atual percepção.
Em conversa informal com o atual ministro alemão das Relações Exteriores, Heiko Maaß, durante a recepção anual para jornalistas radicados em Berlim, ele foi discreto, mas mostrou muito desagrado com a situação brasileira já na época em que Bolsonaro era somente um candidato.
Em minha atividade de jornalista e membro da Associação de Jornalistas Europeus (VEJ), participei recentemente de uma conversa entre colegas e o ministro Gerd Müller, membro do governo Merkel e responsável pela pasta de Cooperação Econômica (BMZ). O site do ministério atesta um orçamento robusto que abrange o volume de 1,89 bilhões de euros, financiamento de 111 projetos e programas sociais em 12 setores. Na conversa, o ministro sinalizou que haverá, em breve, uma viagem oficial ao Brasil e mostrou estar despreparado, sem saber o tom árido que irá encontrar no discurso do novo governo. O exemplo da Amazônia promete ser o maior antagonismo entre as duas partes. Müller, que é do partido da Baviera, está tateando no escuro. Mesmo com o suporte da GIZ, empresa que atua diretamente no Brasil e que faz parte da “Organização Teto” do ministério, a insegurança do governo alemão é gritante.
Para coroar o despreparo, ao ser perguntado se há uma verba extra na cooperação devido à crise na Venezuela, com milhares de refugiados entrando pela fronteira de Roraima e colocando o Brasil frente a um imenso desafio humanitário e logístico, a resposta foi: “a Alemanha não pode resolver todos os problemas do mundo”.
A “guerra” de Steve Bannon
O ex-estrategista-chefe da Casa Branca não alugou um escritório em Bruxelas por acaso. Da capital belga, ele tece sua estratégia de formar um network de adeptos da direita radical e extrema-direita no Velho Continente. O adubo é fértil: a Polônia sofreu o inferno sob o governo do partido de uma direita reacionária e populista, PIS (de direita nacional conservadora), mas está prestes a ter eleições no final do ano e as chances de volta ao centro-esquerda são boas, como em análise do meu colega, o jornalista Marcin Antosiewicz, professor na Universidade de Varsóvia e jornalista da Newsweek polonesa. A fundação do partido de esquerda-liberal Wiosna (Primavera), liderado por Robert Bidron, homossexual declarado e ex-prefeito da cidade de Slupsk, é uma das pilastras dos novos tempos na constelação política na terra de Lech Walesa.
A Hungria ainda continua nas mãos do hardliner Viktor Orban, o mesmo que, em 2015, declarou em coletiva: “O problema da migração é da Alemanha”, propositalmente esquecendo que a Hungria faz parte de um grupo de (por enquanto) 27 países. Nesse momento, quando faltam poucas semanas para as eleições europeias, é a Itália a força da extrema direita, o motor mais forte na UE. Matteo Salvini, membro do partido separatista, Liga Norte e Ministro do Interior, conseguiu injetar um clima de ódio na Itália, solo propício para o “projeto” de Bannon e seus lacaios.
Como reportou o site em inglês da emissora Deutsche Welle, milionários alugam mosteiro medieval na Itália para abrigar o projeto “Guerreiros Culturais da Extrema Direita”, coordenado por Bannon.
O encarregado
O fato de Eduardo Bolsonaro presidir a Comissão das Relações Exteriores na Câmara e, com isso, estar legitimado para alinhavar parâmetros da política externa do Brasil, não é sistemático para erros crassos de um DES-governo, mas terá, a médio e longo prazos, consequências desastrosas. Como “encarregado” de Steve Bannon na América Latina, num traçado que faz lembrar de período cinzento quando os EUA faziam dela seu “quintal”, a aliança entre os dois é diabólica, mas solo fértil para Eduardo ir destilando seu ódio e uma síndrome crônica.
Na última semana, o “número 2”, foi “em missão” para a Europa. Passou algumas horas na Hungria, conversou com o premiêr Viktor Orban. Na saída, disse que “aprendeu muito” com o húngaro sobre como lidar com imigrantes.
Em seu “giro d’ Itália”, Eduardo ficou um dia e meio executando seu entreguismo e comemorando seu upgrade como enviado do governo brasileiro, banhando-se em regozijo por se sentir o Jared Kushner dos trópicos.
Nesse roteiro de viagem, em termos de coerência política à la Bolsonaro, ficou faltando uma visita à França e conversa com Madame Le Pen, do partido de extrema-direita Front National. Talvez ele ache que mulheres à frente de partidos políticos sejam um “acidente de percurso”, por isso passou ao largo por Paris.
Matteo Salvini, do partido separatista Liga Norte, é símbolo da nova geração da extrema-direita na Europa, um hardliner na pasta do Interior. Dando seguimento à sua postura entreguista e de subserviência, Eduardo pediu desculpas a Salvini “pelos 37 anos de permanência de Cesare Battisti” no Brasil e cometeu gafe, ao vivo e em cores, transmitida pelo Facebook, quando, falando sobre imigração, se embaralhou com os termos jus sanguinis (direito de sangue) e jus soli (direito de solo), critérios que definem a política migratória do governo italiano. Graças ao deputado Roberto Lorenzat, que se encarregava da tradução, a gafe não foi ainda maior. Salvini ainda mandou “um recadinho” através de Eduardo: os descendentes italianos no Brasil devem ligar para seus parentes na Itália e pedir que eles votem na Liga Norte nas eleições no final de maio (que formarão as próximas bancadas do Parlamento Europeu em Estrasburgo).
Dinâmica dos fatos
Em 2019, o presidente Lula continua preso. Sua influência política foi estrangulada. Todos os apelos de organizações internacionais para que a candidatura de Lula fosse aceita acabaram ignorados, o que já levava o Brasil para um isolamento político antes do 1º de janeiro. O que veio depois da posse do atual presidente mostra um Brasil dividido como nunca, preocupado somente com o próprio umbigo, algo que já traz grande prejuízo para as relações exteriores com outros países. Para a Alemanha, o Brasil está “na geladeira”.
Ainda em 2015, o governo de Merkel colocava o Brasil na lista de países em que o governo faz “consultações bilaterais”, um grupo exclusivo escolhido a dedo por Angela Merkel. Parcerias desse cacife estão, enquanto Jair Bolsonaro estiver no poder, fora de cogitação. Este cenário em que o Brasil está atualmente inserido é perigoso, imprevisível, prejudicial e custará ainda muitos retrocessos para um país que já foi gigante.
***
Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas cursado na Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.