Imagens não apenas dizem mais do que mil palavras. Uma imagem bem construída gera bons posicionamentos no mercado de trabalho, relacionamentos interpessoais saudáveis e, claro, dinheiro. Quando se fala da imagem de um país, sua importância é ainda maior, não só para fins de crescimento econômico como até para a segurança de seus cidadãos. Afinal, quem gostaria de morar num país que emana uma imagem racista, xenófoba e intransigente? A sensação de um ataque terrorista como resposta a essa postura seria uma constante na população, certo?
O Brasil construiu, ao longo das últimas décadas, uma imagem internacional bastante positiva. Éramos tidos, para grande parte do mundo, como um país alegre, multicultural, multirracial, aberto a todos os povos e costumes. Um país de festa, de alto astral e de natureza exuberante. Que fique claro que tudo isso pode ou não ser a realidade. Mas não importa, essa é a imagem que se tinha do Brasil, bem como a de que os EUA são um país rico, ainda que bolsões imensos de miséria possam ser encontrados andando pelas ruas de qualquer cidade grande do país. Imagem nem sempre é realidade.
Mas imagem é poder. É poder suave. Este termo vem do inglês, soft power, e foi cunhado nos anos 1980 pelo cientista político Joseph Nye para significar “a habilidade de se conseguir o que se quer pela atração, e não pela coerção ou pagamentos”, tendo como principal exemplo, no campo da cultura, Hollywood, que foi capaz de desestabilizar regimes fechados, como o da antiga União Soviética. Os poderes suaves mais eficientes são capazes de trazer ganhos econômicos, turísticos, sociais e tecnológicos para suas sociedades – não porque seus governos conquistam tudo isso por meio do dinheiro, da violência física ou moral, mas pela sedução e atração de seus valores e produtos. A língua inglesa traz enormes benefícios para países como EUA e Inglaterra, por exemplo, na facilidade de vender produtos audiovisuais falados neste idioma. A arte renascentista não só suavizou a imagem da Igreja Católica como transformou a Itália num dos maiores captadores de recursos turísticos e econômicos do mundo. O balé russo é o cartão de visitas mais utilizado por diplomatas daquele país em missão comercial mundo afora, seduzindo o mundo não com canhões ou sanções, mas com sapatilhas e arte. A cultura MAG (mangá, animê & games) do Japão é vorazmente consumida até por seus arquiinimigos políticos históricos, como China e Coreia do Sul.
O Brasil, apesar de não ter o poder da língua inglesa, o poder tecnológico japonês nem bélico russo, é um dos países que mais acumularam poder suave nas últimas décadas. Mas quase tudo está sendo dilacerado diariamente pelo poder duro (hard power) que se instalou em Brasília neste ano.
O carnaval é um de nossos mais eficientes poderes suaves, o que mais ajudou a alimentar a imagem de país aberto e amigo. Mais do que isso, o carnaval é exibido em dezenas de países, traz turistas do mundo inteiro e muito dinheiro para a economia. Neste ano, porém, o presidente Jair Bolsonaro decidiu se manifestar nas redes sociais durante o carnaval. Não para exaltar a festa, mas para compartilhar um vídeo no qual um rapaz tira a roupa e faz gestos obscenos num bloco de rua de São Paulo. O post ganhou repercussão internacional e obviamente contribuiu para o enfraquecimento do poder suave brasileiro, uma vez que atesta o entendimento de que a festa não é alegre e feliz, mas pornográfica e caótica. Um caso isolado tomou dimensão nacional quando o líder político do país escolheu apenas isso para divulgar.
Mais recentemente, outra fala do presidente ganhou repercussão na imprensa internacional ao dizer que o Brasil não deve se tornar um “paraíso do turismo gay”. A fala emana claramente a rejeição do líder do país ao dinheiro vindo deste turismo, lembrando que a Parada LGBT de São Paulo é a maior do mundo inteiro e lota os hotéis da cidade, além do Rio de Janeiro e outras capitais. Enquanto o mundo cria cada vez mais nichos de negócios dedicados a este filão, o Brasil fecha suas portas para ele.
Hollywood é o maior poder suave do mundo. O poder que os filmes e séries norte-americanos tem de seduzir seu público já gerou trilhões de dólares em vendas de produtos, serviços e turismo para os EUA. A maioria dos presidentes norte-americanos sabia que Hollywood é uma indústria estratégica do país, pois levava seu modo de vida para o mundo inteiro. O audiovisual é uma fábrica de dinheiro e a maioria dos países desenvolvidos do mundo cria meios de fomento interno. Mas, neste ano, o Ministério da Cidadania não só impôs a redução brusca de teto de investimento cultural via captação de recursos como também travou uma campanha ideológica contra toda manifestação cultural que ameace os “bons costumes da família brasileira”. Acontece que o audiovisual só ganha poder suave quando ele é livre para se manifestar de forma eficiente e criativa. Hollywood só se manteve o maior poder suave do mundo porque nenhum presidente norte-americano tentou boicotar essa indústria em escala internacional, mesmo quando ela produzia filmes que iam diretamente contra os interesses de Washington, como após a Guerra do Vietnã.
A caça às bruxas atingiu também a Apex, Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, responsável por promover serviços e produtos nacionais no exterior. A exoneração do presidente da agência, Mario Vilalva, foi a apenas a ponta do iceberg do controle ideológico que o governo quer ter numa agência que precisa de liberdade, racionalidade e faro de negócios para trabalhar com venda e promoção de produtos culturais brasileiros mundo afora.
Mas nem tudo está perdido… ainda. O Brasil possui outros dois poderes suaves que, por enquanto, passaram intactos aos ataques do poder duro instalado em Brasília. A bossa nova continua sendo ouvida, comprada e reproduzida em filmes, novelas e séries dos lugares mais distantes do mundo, de Los Angeles a Tóquio. Mas o movimento só terá sobrevida enquanto poder suave se reoxigenar seus agentes, ou seja, atrair novos cantores e compositores. E promovê-los será uma estratégia inteligente de agências como a Apex, mas o cenário não está dos mais favoráveis.
Outro imenso poder suave brasileiro são as telenovelas, que, assim como o carnaval, ajudaram a moldar a imagem do Brasil no mundo inteiro. A TV Globo, imbuída de poder econômico e liberdade criativa, conseguiu exportar suas telenovelas para mais de 100 países, transformando-as num grande poder suave. A novela A Escrava Isaura, por exemplo, foi vista por 450 milhões de chineses. O maior mercado de rua que Luanda (Angola) já teve se chamava Roque Santeiro, por conta do sucesso da novela brasileira no país. Paladar, o restaurante que Raquel (Regina Duarte) tinha na novela Vale Tudo, virou também o nome dos pequenos restaurantes privados autorizados a funcionar após a abertura econômica de Cuba, nos anos 1990. Há relatos jornalísticos de que a primeira versão da novela Sinhá Moça (1986) interrompeu os conflitos bélicos na Bósnia, Croácia e Nicarágua.
Mas a TV Globo, hoje, é claramente de oposição ao governo. Enquanto isso, o presidente não esconde a preferência pela TV Record. Resta saber se Bolsonaro vai tentar boicotar as exportações de telenovelas da TV Globo e dar uma ajudinha ao bispo para exportar tramas como A Terra Prometida, Jezabel e Caminhos do Coração. Mas o empurrãozinho do poder duro nem sempre é o suficiente para produtos culturais ganharem poder suave. Criatividade e liberdade precisam estar neste pacote.
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Franthiesco Ballerini é autor do livro ‘Jornalismo Cultural no Século 21’ e finalista do 60º Prêmio Jabuti por ‘Poder Suave – Soft Power’.