Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O Sétimo Guardião: uma novela esquecível

(Foto: Divulgação).

Até mesmo os que são avessos ao culto da superstição popular que jura que um gato preto é sinônimo de atraso terão tido suas dúvidas, ou, pelo menos, feito reflexões esporádicas, sobre a figura principal da novela global no horário hiperprime das 21 horas.
Os sinais de tempos sombrios para o horário global mais importante devido ao peso econômico dos anunciantes se exibiriam muito antes da novela entrar no ar.

Solo árido

Autor de novelas memoráveis, como Tieta (1989), e criador de personagens como Nazaré (vivida por Renata Sorrah), eterna na retina de aficionados noveleiros, Aguinaldo Silva é frequentador assíduo das redes sociais. Mesmo escrevendo a novela em equipe (com Joana Jorge, Maurício Gyboski, Zé Dassilva e Virgílio Silva), é espantoso, para dizer ao mínimo, o tempo em que o autor principal gastou para adiantar que, “em breve”, um serial killer estará aterrorizando a outrora pacata cidade de Serro Azul, fazer enquetes (como qual dos guardiães deveria ser poupado se o Padre Ramiro ou o Gabriel) e ainda compartilhar suas refeições, preparadas especialmente por ele em sua cozinha hiperfuncional e sempre plataforma de pratos deliciosos.

Mesmo que tenha se tornado rotineiro ver pessoas vivendo através das redes sociais, como uma versão antiga de “espelho, espelho meu”, é no mínimo inusitado um autor com responsabilidade de entregar os capítulos em dia compartilhar tantas de suas mais diárias rotinas. Não é segredo para ninguém que o clima nos bastidores ficou ainda pior quando os capítulos eram gravados 3 ou 4 dias antes de ir ao ar, o que obrigou gravações aos domingos.

Imagino o ritual diário do brilhante Dias Gomes enquanto escrevia Saramandaia (1976). Decerto que a comparação, por um lado, é oportunista, já que os Zeitgeist envolvendo os dois autores globais não poderiam ser mais antagônicos. Porém existe, uma semelhança entre eles. Em Saramandaia, em pleno período da ditadura militar no Brasil e com as “Solanges ” da censura sempre de antenas ligadas, o marido da não menos brilhante Janete Clair teve que recorrer ao universo mágico na cidade de Bole-Bole. Mesmo usando caricaturas, elementos do absurdo e do grotesco, Dias Gomes conseguiu alinhavar no argumento principal um comentário político e ácidas reflexões sociais – além de dar uma tacada matemática, agendando a explosão de Dona Redonda para a terça-feira de carnaval.

Antes, durante, depois

Quando O Sétimo Guardião entrou no ar, em novembro de 2018, o Brasil se encontrava, ainda, sob o choque da constatação de que 57 milhões de pessoas votaram no (erroneamente apelidado) “Trump dos Trópicos”, mas a sinopse já tinha longa e confusa estrada. Decerto que o sinal verde da chefia das telenovelas foi corajoso. No horário das 21 horas, elementos fantásticos e universo mágico é, sempre, um grande risco, mas o núcleo, sob a responsabilidade de Rogério Gomes, teve a credibilidade de levar o projeto adiante, mesmo que a novela tenha quase sido cancelada até que Silva apresentasse documentos que garantissem seus direitos como autor.

Em aulas ministradas em 2015 na Casa Aguinaldo Silva das Artes, no bairro da Vila Buarque, em São Paulo, um grupo de 26 roteiristas, durante dez dias, fez um curso intensivo no qual a principal tarefa era criar o argumento para a novela. Nesse contexto, segundo o jornalista Sandro Nascimento, “os roteiristas tiveram de assinar um contrato de cessão de direitos assim que foram selecionados para o curso intensivo. No acordo, aceitavam transferir os direitos patrimoniais dos trabalhos criados para Aguinaldo Silva. Deveriam manter, no entanto, os direitos morais e autorais da criação”. Na sequência da aprovação da sinopse, os roteiristas receberam o comunicado que o valor de inscrição para o curso intensivo seria devolvido, desde que concordassem com “cessão de direitos gratuita, total, irrevogável, irretratável e exclusivamente” à Casa Aguinaldo Silva de Artes. Dos 26 alunos, o escritor Silvio Cerceau não concordou e insistiu ser creditado como “coautor” da novela, ameaçando entrar com uma liminar para a suspensão da obra. A quarta maior emissora de TV do mundo se viu confrontada com uma situação jurídica resultante de um amadorismo inaceitável.

Como se abacaxis jurídicos não fossem suficientes, um figurante de 23 anos e com nome artístico de Joseph Zimmerman morreu durante as gravações após ter recebido uma injeção no posto médico da emissora. Prontamente veio à tona o protesto contra as condições de trabalho de figurantes, algo que traz sequelas para a imagem da emissora.

Trama carrossel

O argumento principal focado no triângulo amoroso entre Gabriel, Júnior e Luz foi por água abaixo depois do suposto envio de um nude do ator José Loreto para a mocinha da trama, Marina Ruy Barbosa, que fez desenrolar uma dinâmica (e que ironia!) bem mais interessante do que as cenas diárias da novela que, visivelmente, perdia o rumo. Débora Nascimento, esposa de Loreto e mãe da pequenina Bella, postava textos dotados de entrelinhas em sua conta no Instagram. Prontamente iniciou-se uma mobilização nas redes sociais. Do protótipo de mocinha de qualquer novela (Amor à Vida, Totalmente Demais, Império, com codinome “sweet child“), Marina se viu confrontada com um shitstorm que teve seu ápice quando a atriz Bruna Marquezine parou de segui-la. Mesmo que, depois do sobressalto inicial, Bruna tenha alegado ter deixado de seguir a ruiva durante o calor das discussões no período das eleições presidenciais, até que se prove que focinho de porco não é tomada, a internet já fez todo o resto. Formaram-se grupos contra e a favor de Marina e a internet ficava mais rica com a criação da expressão “surubão de Noronha”, uma alusão às altas noites na pousada de propriedade de Bruno Gagliasso e sua poderosíssima mulher, a influencer Giovana Ewbank. Ela, sempre muitíssimo hábil em mexer os pauzinhos, conseguiu tornar o climão nos estúdios ainda mais insuportável, mesmo não tendo que pisar nas dependências do Projac. Depois que parou de seguir a atriz, da qual foi nada menos que madrinha de casamento, juntamente com outras starlights, Bruno e Marina, que antes ensaiavam as cenas juntos, cortaram todo o supérfluo no quesito comunicação e só interagiam depois de ouvir de Rogério Gomes: “gravando!”. Nesse meio tempo, Loreto lutava para salvar seu casamento. Débora postava fotos de uma praia no Uruguai com uma amiga e boatos de Marina tendo crise de choro antes de filmar cenas com Loreto faziam a ronda.

Foi preciso que a ex-Narizinho do Sítio do Pica-Pau Amarelo, Isabela Garcia, postasse em sua conta no Instagram: “Eu amo essa garota!”. Não é preciso uma bola de cristal para saber como ficou o clima no Projac com grupos pró e contra Marina. Na sequência, no melhor formato de Tropa de Elite, os apelos pedindo para “sair” se deram em número inflacionário. Era gente torcendo para estar na lista do serial killer para sair da novela – o mais trágico de uma situação que poderia e deveria ter sido evitada, já que os profissionais de produção de novela deveriam ser craques em lidar com vaidades e neuroses de atores e atrizes. Entre outras derrotas, o elenco inteiro foi testemunha de homérico barraco entre Mariana e Lília Cabral na gravação de uma cena noturna onde quase todo o elenco tinha que estar presente. Alegando estar “num consultório médico”, Marina levou uma superbronca da atriz veterana, que já incorporou a chata da Aldeíde em Vale Tudo (1988), quando a ruiva ainda nem era nascida. Cabral teria soltado o verbo com Marina, chamando-a de “mimada” e recebendo apoio de todo o elenco presente. Um erro crasso da equipe de produção, no quesito prevenir conflitos ou administrá-los quando já está tudo jogado no ventilador. Marina e Lília não pertenciam ao mesmo núcleo, com constantes cenas juntas, mas imagina-se um clima de aversão a Marina, protagonista da novela, desencadeado depois da cena.

Infelizes escolhas

Aguinaldo Silva nunca fez segredo de que sua musa inspiradora é a atriz Marina Ruy Barbosa. Muito antes da encrenca envolvendo a sinopse da novela e a situação não esclarecida com os direitos autorais, ele já havia publicado na sua conta no Facebook que ela seria a protagonista de sua próxima novela. Marina é uma linda mulher e poderia estar em qualquer passarela de alta costura do mundo, mas sua habilidade como atriz encontrou limites de atuação na trama pincelada com elementos do realismo fantástico. Os constantes olhos arregalados para compensar a visível falta de ferramentas imprescindíveis para atuar foram só mais um dos testes de paciência para o aficionado em novelas. Como de praxe, a atriz da novela das 21h sempre canta no especial de fim de ano com o rei Roberto Carlos. Mas até nesse caso houve problemas. RC, o mais supersticioso dos homens, ficou em dúvida se convidaria Marina, já que seu personagem, Luz, era vidente e sensitiva. Percebe-se como a puerilidade arrebatou um país quando a pauta regente, durante semanas, é se RC irá ou não encarar o desafio.

Bruno Gagliasso

Os olhos azuis mais lindos da TV brasileira têm esse nome – como o policial no filme Marighella, dirigido por Wagner Moura e recentemente exibido no Festival de Berlim, Gagliasso teve excelente desempenho, mas como Gabriel ele entrará para duas galerias nada honrosas: terá sido o pior guardião de todos os tempos e a química entre ele e Marina conseguiu ser pior do que a de Paloma e Bruno (Paolla de Oliveira e Malvino Salvador) em Amor à Vida.

A trama desandou

O gancho principal, que era para ser o triângulo amoroso e a guerra entre mãe e filho (Valentina e Gabriel), desandou para um foco, como diz o jargão, para o núcleo da segunda fileira. O monstruoso talento de Elizabeth Savalla e Tony Ramos teve sua maior cota de desperdício. Devido aos barracos e divergências no núcleo da primeira fila, Aguinaldo Silva aumentou consideravelmente os personagens dos dois medalhões da teledramaturgia. As cenas com o Robert de Niro brasileiro tinham sempre o mesmo cunho: um Olavo colérico. A única exceção em toda a novela: a cena em que ele está na delegacia para anunciar o desaparecimento da filha Laura, a personagem totalmente dispensável de Yanna Lavigne. Se ela for cortada na edição internacional, não fará qualquer falta na trama. E a virada de Mirtes para esotérica não convenceu ninguém.
Assédio: o tema alinhavado nas cenas entre Marilda (Letícia Spiller) e Fabim (Marcelo Melo Junior) ficou por isso mesmo, intuindo que mulheres gostam mesmo da coisa, já que o autor tratou o assunto sem quaisquer desdobramentos fora uma cena ridícula de ciúme do marido, como se assédio fosse algo corriqueiro e normal para desaparecer na confusa rotina do dia a dia.

Marcelo Serrado (Nicolau)

A personagem que iniciou com cenas cavalares de machismo e homofobia teve nuances insinuando que ele poderia se tornar uma pessoa melhor para cair no ridículo da última cena, com a família buscapé ao redor da mesa, todos falando ao mesmo tempo e o pai da família sendo tolerado naquele ambiente. O alinhavar da personagem extrapolou todas as fronteiras do ridículo. Nem como super macho-alfa nem na cena quando pergunta ao filho o que ele sente quando dança a personagem angariou 1% de empatia.

Carolina Dieckmann

O figurino não poderia ser mais caricaturado. A bolsa sempre debaixo do braço, tudo sempre impecável numa cidade onde só se respirava poeira e de um calor das arábias.

Dan Stulbach (Eurico)

Um brilhante ator de teatro (mas que não funciona bem na TV) sucumbiu a uma personagem patética na segunda parte da novela. O autor deixou o Zizinho descer com o fusquinha ladeira abaixo na banguela. Que desperdício!

Paulo Betti

A participação do grande ator de teatro poderia ter sido um reload do temido blogueiro Teo na novela Império (2015), também de Aguinaldo Silva. Paulo Betti, na tela, pode ser comparado com um frescor de verão à beira da praia. Ele merecia o esmero e o cuidado de angariar qualidade ao elenco com uma personagem à sua altura.

Visibilidade exacerbada

O clima nos bastidores, o pipocar nos sites de entretenimento, a Globo sempre na berlinda com pautas negativas foram só partes do drama que foi essa novela. Com a notícia de afastamento de Bruno Gagliasso para uma cirurgia nos rins, Aguinaldo teve um piripaque de 15 minutos que custou valiosas porcelanas de seu apartamento em frente à praia. Os detalhes do arrebatamento de emoções foram divulgados na sua conta do Facebook. Ainda segundo ele, depois dos 15 minutos, no formato de disciplina prussiana, sentou-se ao computador e reformulou os capítulos em velocidade blitz.

Na sequência, o autor deu a entender que estaria sofrendo bullying. Sites de entretenimento divulgaram notícias de que a direção da novela estaria fazendo reuniões sem sua participação. Num post no FB em 16/03, Aguinaldo contou experiências de bullying nos tempos de escola.

Na terceira semana de abril, o autor partiu para sua segunda residência: a cidade de Lisboa. Postando fotos da madrugada do céu lisboeta, ele explicava sua insônia “sempre que a novela está nos capítulos finais”. Depois de declarar ter escrito a palavra “FIM” na tela do computador, Aguinaldo mostrou uma foto de costas para câmera e subindo a Avenida 9 de Julho, a principal de Lisboa. Para um bom entendedor, meia palavra basta.
Aguinaldo é um dos autores de novela que vivem numa dicotomia esquizofrênica: por um lado, precisa dos holofotes e é obcecado pelo sucesso. Por outro, como um bon vivant e com uma atitude que não se espera num meio tão competitivo como ser autor fixo de novelas das nove na Rede Globo, ele dá um beijinho no ombro e parte para Lisboa – pelo que parece, seu refúgio das malvadezas humanas.

Frustração

Em 31 de dezembro de 2018, a novela de Aguinaldo Silva registrou o pior Ibope de uma novela das 21h de toda a história da Rede Globo: 15,2 pontos. A antecessora, Segundo Sol, de João E. Carneiro, marcou 33,4 pontos, número que já não pode ser considerado um estrondoso sucesso.

Refletindo sobre as vezes em que escreveu a palavra “FIM”, Silva alegou: “Muitas vezes na vida escrevi a palavra ‘‘fim’… E ela, para mim, sempre significou ‘‘recomeço’. Hoje, mais uma vez a escrevi: ‘Fim’! E agora me pergunto, como naquela canção de Ivan Lins: vai valer a pena ter sobrevivido?”

Walcyr Carrasco, o arquirrival de Aguinaldo na Globo é o autor da novela que acaba de começar no horário nobre: A Dona do Pedaço.

Na lista das piores novelas globais do horário das nove, decerto que Babilônia ficará na memória como o maior de todos os equívocos. A situação foi tão precária que os capítulos tiveram de ser reescritos por membros do grupo de autores da emissora, deixando Gilberto Braga desbancado. O UOL divulgou até notícias de choro nos bastidores. Mas O Sétimo Guardião ainda sai na frente nesse cenário indigno, trágico e de picuinha em volta da novela que tinha um gato preto como protagonista. Até o motivo que deu origem ao gato preto não foi coerente na tentativa de explicação.

O Brasil de 2019 é bem outro da época de Saramandaia. Depois da chegada da internet, tudo mudou. Com a Netflix, nada nunca mais foi como antes. Mesmo assim, novelas como Avenida Brasil conseguiram, apesar da internet e Netflix, parar uma sexta-feira em novembro de 2012. Tanto na Avenida Atlântica como na Avenida Paulista.

Audiência é um critério a ser muito bem analisado e alinhavado, já que as telenovelas exercem decisivo papel econômico de plataforma de posicionamento de produtos. Isso vale tanto para os colares da Valentina Marsalla como para as canecas do assistente do delegado, o Peçanha, para as bolsas de Marilda (Letícia Spiller) e até para os brincos de Lourdes Maria, personagem incorporada pela fenomenal Bruna Lynzmeyer, mas que ficou aquém do imenso talento da atriz de O Circo Místico. Porém, todos os perrengues, penúrias e tragédias em quantidade e intensidade tornam O Sétimo Guardião uma novela para esquecer. Na festa de encerramento, nem se viram Marina ou Bruno. Somente o elenco “da segunda-fila” apareceu. Termômetro melhor do que esse, para todo o decorrer da novela, impossível.

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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.