Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Midiatização: A corrida espacial na palma da mão

Foto: Reprodução de youtube do vídeo Elton John – Rocket Man, Official Music Video

Após o término da Segunda Guerra, a corrida armamentista trazia consigo a corrida espacial, evidenciando uma competição tecnológica, econômica e política entre os EUA e a União Soviética. De Vostok I a Sputnik I, certamente a pós-verdade espacial da época deve ter produzido conteúdos estelares que não ficam atrás das verdades relativas e falseadas produzidas nos dias atuais. Façamos apenas alguns ajustes em termos dos emissores e receptores das notícias, mas o que temos ainda é um mundo em que narrativas estão em disputa. Com uma diferença: não tínhamos os dispositivos midiáticos de hoje e o processo em si de midiatização ainda dava seus primeiros passos se comparado à profusão de circulação de mensagens que temos atualmente. Um novo mundo se configurava tendo a inovação como algo muito próximo das estrelas e longe do alcance das mãos.

Como nota deste período, é importante ressaltar que o “fetiche” espacial também permeava o mundo das artes. Em uma mistura de religião e astronomia, David Bowie lançava, em 1972, a canção Starman, cuja letra anunciava a esperança de salvação que viria dos céus pelo mensageiro Ziggy Stardust, o astronauta heterônimo do próprio Bowie: “Há um homem das estrelas esperando no céu, Ele gostaria de vir e nos encontrar”. Naquele mesmo ano, Elton John ecoava sua crise espaço-existencial: “Eu sou o homem-foguete, queimando seus fusíveis aqui sozinho”. Pulando uma década, Michael Jackson desafiava a gravidade nos idos de 1980 com seu passo da lua (moonwalk), reinterpretando as leis da física. Salvação, solidão e mobilidade pareciam convergir no espaço, palco das conquistas, das disputas políticas e dos avanços tecnológicos.

Passadas algumas décadas, o desafio espacial permaneceu – não voltamos à Lua e Marte ainda é uma conquista setentista restrita a Ziggy Stardust. Porém, emergiram outras “corridas” que, embora estejam em terra firme, são também “espaciais”, mas não no sentido anterior da vastidão do universo. Ao contrário, fala-se aqui do “espaço” que Milton Santos definiu como “um verdadeiro campo de forças”, o espaço – meio – como o lugar material da possibilidade dos eventos. Em seus últimos textos, Milton Santos preferia a palavra “meio” a espaço por essa última ser mais usada para o sentido de “sideral”.

Nessa nova corrida, o “espacial” tem o sentido ressignificado de “meio”, no qual EUA e China travam uma guerra comercial por territórios e mercados em terra firme cujas variáveis em disputa são as tecnologias e dados existentes e aquele possíveis de serem gerados a partir dos smartphones. De um lado, tem-se a chinesa Huawey, que produz, além de smartphones, diversos equipamentos de redes e para redes 5G, sendo uma das pioneiras nessa tecnologia e a maior fabricante de smartphones da China (onde é proibido o funcionamento de sites como Facebook, Google, Twitter e Youtube, acirrando as disputas com o Ocidente). Do outro lado, os EUA aventam a possibilidade de a Huawei utilizar seus aparelhos para espionar os cidadãos e empresas norte-americanas (estaríamos falando deste pioneirismo americano em sua versão oriental?) A Huawei tem sido o foco das atenções, já que a empresa foi impedida através do Google de receber atualizações do sistema operacional Android, com repercussões como a suspensão das relações com outras empresas americanas, como Intel e Qualcomm – ou seja, todas cortaram laços com a Huawei. A midiatização, é portanto, o epicentro dessa crise, dado todo o potencial em termos de expansão econômica e dominação política possível a partir das informações coletadas por um aparelho celular. Não muito longe daqui, eleições já foram decididas por informações dessa natureza.

Avançando-se sobre uma definição do termo, a literatura da área de comunicação sobre “midiatização” invariavelmente o situa sob uma perspectiva que ultrapassa uma primeira leitura meramente determinista, atrelada unicamente à tecnologia. A midiatização está vinculada a uma visão da realidade construída sob a perspectiva dos impactos no campo social advindos do uso dessas tecnologias nos campos comportamental, político, econômico etc. Nesse sentido, fala-se em “mídia” não apenas como dispositivos, mas sobretudo como “instituições” que podem influenciar outros poderes e igualmente outras instituições (Justiça, família, religião etc). A forma como os meios de comunicação se posicionarão nessa cobertura da guerra comercial entre EUA e China será decisiva na guerra simbólica das narrativas. Ou acirrarão uma visão empobrecida e dicotômica de mundo ou buscarão compreendê-lo de uma forma que contemple sua complexidade. Nesse sentido, faz-se necessário indagar: que narrativas estão em disputa? Como serão retratadas?

A conquista espacial que outrora representou a supremacia de uma nação em relação às outras se deslocou para outro campo, o da compreensão ultracustomizada dos desejos, vontades e formas de pensar de cada indivíduo. A nova corrida “espacial” está, portanto, na palma da mão. É uma corrida dos “meios”, em terra firme, sendo mais importante conectar-se com pessoas próximas do que tocar os pés em solo lunar. Os sentidos atuais de “espaço” vinculam-se às relações de poder, a uma redefinição geopolítica das nações e aos espaços privados sendo invadidos numa guerra silenciosa por dados, vestígios comportamentais e rastros de memória individual. Tal como a arte, que imita a vida (ou seria o contrário?), temos salvação e solidão pela tecnologia, fincados a partir do ideal de mobilidade destes novos tempos.

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Rodrigo Maurício Freire Soares é doutorando do Programa de Comunicação e Culturas Contemporâneas da UFBA e professor do curso de Comunicação/Relações Públicas da UNEB.