Publicado originalmente em objETHOS
Convidado que fui para discutir esse tema complexo com estudantes, colegas professores e pesquisadores da Universidade Federal do Acre (UFAC), cá estou, em Rio Branco, com a nobre missão de fazer a palestra de abertura da 8ª Semana Acadêmica da Comunicação, que tem como tema “Jornalismo, Ética e Responsabilidade Social”. A seguir, parto de alguns fatos sociais recentes, de ampla repercussão pública, para debater jornalismo, ética e responsabilidade social. Escolho essa abordagem devido ao papel relevante desempenhado pela imprensa nas disputas de hegemonia e na formação de uma possível “opinião pública”.
Minha hipótese provisória é de que, no atual ecossistema digital, são por demais claras a permanência e a relevância do papel estratégico que a mídia jornalística (tradicional e nova) tem na disputa da hegemonia, na configuração da opinião pública e na luta política.
Neste sentido, acrescento ainda a pertinente e atualíssima observação do professor e pesquisador Rafael Bellan, do curso de jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES): “Os acontecimentos demonstram que a chamada ‘velha mídia’ e o jornalismo como prática social construída sobre uma base denominada imprensa permanecem com um poder na elaboração dos sentidos que, embora balançado pelo advento das novas tecnologias, permanece extremamente influente e poderoso” (BELLAN; GATTO, 2016).
Nos últimos anos, nas palestras e debates de que participo, faço um pequeno teste de observação e construção social de sentidos, que tem no espaço público configurado pelo jornalismo um vetor de extrema importância. Apresento a logomarca do Sistema Único de Saúde e pergunto às pessoas: “o que significa pra você, em uma palavra, o SUS visto pelas lentes da imprensa hegemônica do país?”
Invariavelmente, as respostas apontam para “caos”, “morte”, “ineficiência”, “filas” etc. Depois, inverto a lógica e passo a perguntar “quantas pessoas aqui são vacinadas?”, “quantos aqui conhecem ou têm familiares com problemas oncológicos que foram atendidos pelo SUS?”, “quantos têm parentes ou amigos soropositivos?”… Há sempre uma expressão de espanto nas plateias e de confirmação dessa hipótese: seja pelo “viés de confirmação” (a tendência humana a dar crédito às informações que batem com nossa visão de mundo) ou apenas por simples acomodação, as notícias sobre as deficiências do maior sistema público de saúde do mundo prevalecem. As centenas de milhares de vidas salvas todos os dias pelo “bendito” SUS, bem, isso não é e jamais será pauta do Jornal Nacional – só para ficar no espaço mais nobre do telejornalismo brasileiro, com suas dezenas de milhões de audiência.
Jornadas de junho de 2013
Segunda-feira, 17 de junho de 2013. Mais de 250 mil pessoas saem às ruas em dezenas de cidades de todo o país. Em Brasília, a marquise do Congresso Nacional é tomada por manifestantes e a cena ilustra a escalada do movimento que nasceu em atos contra o reajuste de tarifas de transporte e revelou uma longa lista de insatisfações de brasileiros e brasileiras.
Rapidamente, esse movimento espontâneo passa a ser hegemonizado pelos atores “sociais”, forjados basicamente a partir das redes sociais – como é o caso de Movimento Brasil Livre (MBL), Vem pra Rua e Revoltados Online, dentre outros mais ou menos vistosos no mundo virtual. Em comum, uma orientação política que flertava com valores da extrema-direita, contrapondo-se aos políticos e organizações tradicionais da política (da direita à esquerda, passando por todos os matizes), bem como aos movimentos sociais organizados (sindicatos, associações, entidades estudantis e populares, ONGs etc.). Entre 13 e 20 de junho, as centenas de manifestantes rapidamente superaram a casa de 1,2 milhão no país.
Tais movimentos “contra tudo o que está aí” receberam, de pronto, plena simpatia da mídia tradicional, capitaneada pelas maiores emissoras de televisão aberta, notadamente o Grupo Globo (tanto em canal aberto quanto por assinatura, GloboNews). Esse episódio causou profundo desgaste à gestão Dilma Rousseff (na fase final de seu primeiro governo), a quem era imputada um conjunto de problemas, com ou sem razão. Em suma, se todos os políticos e partidos são iguais, era indiferente em quem a sociedade votaria como seus representantes em 2014 e 2018.
Como não existe “vácuo” na política, foi o começo do caminho para qualquer tipo de “messias” assumir o Palácio do Planalto. O primeiro resultado, no entanto, estava consagrado e seria decisivo para o impeachment da ex-presidenta Dilma: nas eleições de 2014, o eleitorado escolheu o Congresso mais conservador desde a redemocratização, em 1985; dos eleitos, 373 deputados federais (73% do total de 513 eleitos para a legislatura 2015-2019) atuaram nas bancadas da bala (segurança), do boi (ruralista) e da Bíblia (evangélica). Ou seja, sobraram 140 parlamentares (27%), somando todos os partidos com representação na Câmara. A bancada BBB dominava, enfim, a cena política nacional.
Apesar da crise
Entre 2014 e 2017, a imprensa tradicional brasileira se empenhou em construir e hegemonizar uma narrativa única sobre a crise econômica, que começava a dar sinais evidentes no final do primeiro governo Dilma, entre 2013 e 2014. O rótulo escolhido foi simples e profundamente eficaz: “apesar da crise”, como bordão presente nos títulos e manchetes das notícias e reportagens. Uma página no Tumblr reúne centenas de reportagens em portais e canais de áudio e vídeo agregadas pela hashtag #apesardacrise.
Fiz uma simples pesquisa no buscador Google e encontrei 558 mil notícias publicadas entre 2014 e 2017 devidamente identificadas e tituladas com o bordão “Apesar da crise…”. À época, lembro de um estudo feito pelo professor e pesquisador Márcio Pochmann (Unicamp) sobre as percepções da crise econômica com famílias de baixa renda nas comunidades de Campinas (SP). O resultado, em síntese, apontava para um paradoxo: as pessoas diziam que, em termos familiares, estava tudo relativamente bem (pouco registro de desemprego, filhos nas escolas e faculdades etc.), mas ressaltavam: “a economia vai muito mal e o país está vivendo uma profunda crise”.
Nesse sentido, merecem destaque alguns títulos curiosos: “Apesar da crise, Riachuelo vai inaugurar mais 40 lojas em 2015”; “Cinemas têm maior crescimento em 4 anos, apesar da crise”; “Apesar da crise econômica, empresas de SC registram crescimento”. O meu preferido é: “Apesar da crise, brasileiros continuam no topo de ranking de turistas em Miami”.
Claramente, os agentes sociais do campo conservador e da extrema-direita hegemonizavam o pensamento da sociedade, contando com o auxílio luxuoso da mídia jornalística tradicional, que atua sempre em bloco como oligopólio econômico e político.
Morte do reitor da UFSC
Por último, examino com brevidade um episódio que se revelou trágico para a comunidade da Universidade Federal de Santa Catarina, com repercussões no país e fora dele. Trata-se da morte do professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da UFSC, acusado, “condenado” e preso com o decisivo suporte da mídia hegemônica, aqui atuando sob a égide do padrão “Lava Jato”. O padrão funciona assim: ao acusado, o ônus da prova de sua inocência, numa perversa inversão do “princípio da inocência”.
No dia 14 de setembro de 2017, a notícia-espetáculo se espalha no ar: 105 agentes federais, mobilizados de diferentes estados do país, cumprem dezesseis mandados de busca e apreensão, sete prisões temporárias e outras cinco conduções coercitivas; invadem o campus da UFSC, prendem o reitor em sua casa e outros cinco professores, além de um técnico-administrativo. No Facebook, um post na página oficial da Polícia Federal (PF) de Santa Catarina resumia: “A Operação Ouvidos Moucos contou com o apoio da CGU e do TCU para desarticular organização criminosa que desviou recursos para cursos de educação à distância (EaD) da UFSC”. E acusava em letras garrafais: “Combate ao desvio de mais de R$ 80 milhões para EaD”.
A informação do desvio de R$ 80 milhões (era o total de recursos públicos investidos, em mais de dez anos do programa!) seria corrigida, horas depois, por fontes da PF, mas estranhamente o post permaneceria publicado em sua página oficial por longos 45 dias, até que a família do reitor morto entrasse com uma representação no Ministério da Justiça, pedindo a investigação daquele órgão por abuso de autoridade. O valor investigado nunca foi devidamente esclarecido pelos órgãos de investigação (PF e Ministério Público Federal), mas foi estimado entre R$ 500 e R$ 104 mil.
Preso na Polícia Federal, apresentado como “chefe da organização criminosa” que desviara R$ 80 milhões dos cofres públicos, o reitor foi transferido horas depois para o presídio, passando por toda sorte de humilhações, como o exame de toque anal, correntes nos pés e nas mãos e o indefectível macacão laranja que presos levados ao sistema prisional usam (e são submetidos a toda espécie de humilhações). A acusação: Cancellier “era suspeito de tentar interferir nas investigações internas feitas pelo corregedor-geral, Rodolfo Hickel do Prado”. O reitor morreu negando.
Posto em liberdade no dia seguinte à sua prisão, o reitor foi vítima da segunda condenação em tempo recorde: a juíza Marjôrie Cristina Freiberger, da 6ª Vara Federal, mandou soltar Cancellier (e os demais presos), mas o proibiu de pisar no campus que até então dirigia. Dezessete dias depois, em 2 de outubro de 2017, o professor Luiz Carlos Cancellier era levado ao suicídio num shopping de Florianópolis.
Durante todo esse episódio, a imprensa (local e nacional) ficou refém da fonte única oficial e repetiu, ad nauseam, a acusação sem provas contra o reitor. Depois da tragédia, nas redes sociais, resultado direto dessa formação de culpa, julgamento sumário, prisão e morte, era dominante a última condenação: “Se não tivesse culpa, não teria se matado”. De todos os veículos de comunicação que cobriram o caso, somente a Folha de S.Paulo publicou o “Erramos”, 23 dias depois, informando numa nota perdida num pé de página que o reitor era acusado por “suspeita de interferir na apuração”.
Algumas reflexões finais
Na complexa teia de relações humanas, tecidas e alimentadas a partir das chamadas “redes sociais”, cuja audiência em alguns casos bate a casa dos bilhões de usuários, a formação da opinião das pessoas (no âmbito privado ou na dita opinião pública) tornou-se algo mais difuso ainda. O fluxo de informação é de duas vias, no mínimo; o consumidor de informações é, ao mesmo tempo, produtor e protagonista do jogo midiático – ressalvado aqui o poder de fala que permanece desigual entre o cidadão comum e as megacorporações midiáticas transnacionais.
Penso que seja oportuno resgatar o entendimento de hegemonia que usei para refletir sobre estes três “causos”. Parto do entendimento expresso pelo professor e pesquisador Dênis de Moraes (2010), que escreveu: “O conceito de hegemonia desenvolvido pelo filósofo marxista italiano Antonio Gramsci ajuda-nos a desvendar os jogos de consenso e dissenso que atravessam e condicionam a produção simbólica nos meios de comunicação, interferindo na conformação do imaginário social e nas disputas de sentido e de poder na contemporaneidade”.
Em última análise, observo ainda a observação precisa do jornalista e pesquisador espanhol Pascual Serrano (2013), que destaca “o papel cada vez mais sofisticado e potente que os meios de comunicação adquiriram nas sociedades democráticas, onde a formação da opinião pública é um elemento essencial para o exercício do poder”. Considero que isso é decisivo, do ponto de vista do exercício das relações de poder. Trata-se da capacidade de hegemonização das ideias na sociedade por meio da robusta circulação social da informação, cuja origem nos portais de notícias de veículos tradicionais ganha vida própria e novos significados nas redes sociais.
Ao fim e ao cabo, em cada episódio a sociedade enfrenta um poder midiático nefasto, que age contra a democracia e o interesse público. Ou, como assinalou em outro momento o cientista político Venício de Lima (2016): “A maior de todas as corrupções é a corrupção da opinião pública”.
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Referências
BELLAN, R.; GATTO, Y. (orgs). Jornalismo e crítica de mídia na Amazônia. 1. ed. São Paulo: Scortecci, 2016, 238p.
LIMA, V. A maior de todas as corrupções. 2016. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-maior-de-todas-as-corrupcoes/4/35682.
MORAES, D. Comunicação, hegemonia e contra-hegemonia: a contribuição teórica de Gramsci. Debates, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 54-77, 2010.
MORAES, D; RAMONET, I.; SERRANO, P. Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica e democratização da informação. São Paulo, Boitempo; Rio de Janeiro, Faperj: 2013.
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Samuel Lima é jornalista, professor de Jornalismo da UFSC e pesquisador do objETHOS.