A publicação de supostas fotos de Vladimir Herzog, tiradas presumivelmente no DOI-Codi de São Paulo, no Correio Braziliense de domingo, 17 de outubro – 29 anos menos uma semana do seu assassínio –, abriu uma crise entre o Exército e o Planalto e escancarou a relutância do governo Lula em ‘revolver o passado’ (como disse o ministro da Defesa José Viegas, falando de sua ‘falta de motivação’ para tal).
Do ângulo da produção jornalística, mostrou as dificuldades da imprensa em levar ao público um relato coerente sobre o que começou com um fato de mídia, cuja razão de ser não poucos brasileiros atribuíram a uma conspiração política de sentido obscuro, perguntando-se: ‘Por que isso agora, passado tanto tempo?’ (No último sábado, o blog de Ricardo Noblat colocou no ar um comentário sobre a irritada reação de saturação de um certo número de seus leitores.)
O pecado original da cobertura diária – que tem muito a ver com a inexistência de editorias de mídia nos jornalões – foi não ‘repercutir’, com perdão da palavra, a matéria do Correio já na segunda-feira, a começar pela checagem do que o matutino descreveria, só na quinta, como o ‘garimpo da história’: a trajetória das fotos e de outras revelações correlatas até a primeira página de sua edição dominical.
Revelação correlata e de parar as máquinas, pela qual a concorrência passou batido ao longo da semana, foi a reprodução de uma planilha do DOI-Codi que registra o entra-e-sai de presos ali até setembro de 1975 – contabilizando, burocraticamente, a morte de 50 presos (47 capturados pelo DOI e 3 por outros órgãos). No relatório de outubro, a conta chegaria a 51, com Vladimir Herzog.
Na segunda-feira, O Estado de S.Paulo reproduziu uma das fotos do Correio com um texto-legenda. A Folha ignorou o assunto.
Na terça, o que comandava o noticiário eram a nota do Exército justificando o suplício do jornalista – como que transmitida através do tempo diretamente das centrais do terrorismo de Estado sob o qual o Brasil vivia quando ele foi ‘suicidado’ (o 38º nos porões da repressão) – e a conseqüente indignação do presidente Lula.
Entrevista extraordinária
A partir daí, os diários seriam mobilizados principalmente pela retratação exigida por Lula; pela afirmação taxativa do secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, com base em parecer da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), de que o retratado não era Herzog; e pela caça àquele que os informantes do reportariado na Abin e na CNBB prontamente identificaram como o padre canadense Leopoldo (ou Léopold, conforme o jornal que se lesse) D’Astous (ou B’Astour, como chegou a sair na internet).
Antes disso, sintomaticamente talvez, um jornalista ouviu de um ex-agente do Cenimar a inverossímil versão de que o fotografado era o padre Alípio de Freitas, que hoje vive em Portugal. Localizado, o corpulento Alípio desmentiu de imediato a história, pela qual, dias depois, a fonte se desculparia.
Ficou claro que pelo menos uma parte do noticiário se empenhou em mostrar que não passava de barriga o que o Correio vendera como furo – embora este tivesse sido autorizado a bancar que a vítima era Herzog por ninguém menos do que a viúva Clarice.
No sábado, depois de ver as fotos recebidas por e-mail, ela ligou para o jornal e disse: ‘É ele’. Clarice continuaria a dizer isso dia após dia, pelo menos em relação à foto do homem nu, de frente, usando relógio no pulso direito, e tornou a manifestar a sua convicção na entrevista extraordinária – em todos os sentidos que se queira – feita com ela pela repórter Laura Greenhalgh. Incluíndo uma soberba foto de autoria de Nilton Fukuda, a entrevista ocupou 9 colunas do caderno ‘Aliás,’ do Estadão de domingo passado.
(Ao lado da entrevista, o jornal publica um detalhado depoimento do rabino Henry Sobel, da Congregação Israelita Paulista. Sempre se teve por fato que ele conseguiu ver o corpo maltratado de Vladimir Herzog, antes da lavagem ritual, além de ordenar que não fosse enterrado na ala dos suicidas. Tanto que o box remissivo da Folha de terça-feira sobre a morte de Vlado cita o religioso como tendo dito: ‘Vi o corpo de Herzog. Não havia dúvidas de que ele tinha sido torturado e assassinado’. Mas, no Estado, Sobel escreve que estava no Rio quando recebeu a notícia de sua morte e não conseguiu voltar a tempo de ir ao enterro. Depois de sucessivas conversas telefônicas com os encarregados de preparar e sepultar o cadáver, ‘diante de algo que não vi, mas de que jamais duvidei, tomei a decisão de ignorar o laudo oficial que falava em suicídio’.)
O jornalista Paulo Markun, o outro destinatário dos e-mails do Correio, estranhou as fotos, mas admitiu que podiam ser de Vlado. Este jornalista, ao vê-las impressas, teve a certeza de que era ele na foto do relógio. Mantém essa opinião, apesar das legítimas dúvidas levantadas, entre outros, pelo irmão de Laura, o ex-advogado de presos políticos e deputado Luiz Eduardo Greenhalgh.
Ipsa humana natura
O fato é que os jornais aceitaram de modo geral a versão de que o retratado era – sempre – o padre. E, não com todas as letras, deram a entender que os repórteres do Correio, de posse das fotos, foram com muita sede ao pote, tratando antes de comprová-las do que de conferi-las.
Se fizeram isso, como é possível, apenas adotaram o procedimento-padrão nessas circunstâncias da esmagadora maioria de seus colegas, presentes e passados, de qualquer órgão de imprensa, no mundo inteiro, movidos, em última análise, pela ipsa humana natura. Não justifica, mas explica.
De qualquer forma, no sábado, 23, já se sabia que: 1) as duas fotos do homem sozinho, de frente e de perfil, são mais recentes do que a outra em que aparece também a freira, ou ‘leiga consagrada’, Terezinha de Sales e que foi tirada em 1973 (e não em 1974, segundo a nota do secretário Nilmário Miranda); e 2) o padre revelara (à Folha) que o seu rosto ‘aparecia’ inteiro em todas as fotos que os seus agressores fizeram na cabana em Caldas Novas, Goiás, onde ele e Terezinha foram espancados e aviltados.
Ainda assim, no domingo, o ombudsman da mesma Folha, Marcelo Beraba, criticaria o Correio por ter publicado as fotos que ninguém mais tinha, amparado apenas no aval de Clarice a uma delas. ‘O mais prudente’, segundo Beraba, ‘teria sido submeter o material a testes e perícias’, além de ‘tentar obter mais informações nos bastidores do governo e nas áreas militar e de inteligência’. É um bom argumento – em tese.
Ficou famosa a britânica resposta de Sir Edmund Hillary, o primeiro a escalar o monte Everest, quando lhe perguntaram por que se aventurara a fazê-lo: ‘Porque o monte estava lá’. Mal comparando, foi o que o Correio fez, correndo o risco de buscar o Prêmio Esso e acabar com o Prêmio Ignóbil.
O essencial é que, tudo considerado, mais acertou do que errou – mesmo que nenhuma das fotos seja de Herzog. Porque lembrou os brasileiros de uma verdade histórica e, como sacou na hora o repórter-fotográfico paulista Luiz Carlos Kfouri, os alertou sem querer para uma verdade presente.
A verdade histórica é a das barbaridades que a ditadura cometia com os seus inimigos reais ou imaginários, sejam eles Vladimir Herzog, Léopold D’Astous ou qualquer das centenas de seus mortos ou dos milhares de seus torturados.
Areia demais
Ah, dir-se-á – e este jornalista o ouviu de mais de uma voz –, disso todo mundo já sabia. Falso. Inumeráveis jovens, até universitários, até filhos de intelectuais, sabem pouco, muito pouco ou coisa nenhuma dos horrores que o Brasil suportou entre 1964 e 1984.
Não fosse o filme Olga, é o caso de acrescentar, as novas gerações continuariam ignorando também as monstruosidades do Estado Novo de Vargas.
Melhor a mídia que ‘revolve o passado’, errando no varejo, do que aquela que lhe dá as costas, alegando que o que passou passou.
O que conduz ao segundo e involuntário acerto do Correio: provocar no Exército a reação troglodita que fez ver ao país quanto entulho autoritário ainda sobrevive e se reproduz na instituição militar, quase 20 anos depois de o último e façanhudo general da ditadura deixar o Palácio do Planalto pela porta dos fundos.
Tudo isso – as fotos, as notas e a queda-de-braço que tornou a emergir entre os que dizem que anistia é esquecimento e os que dizem que anistia é impunidade pactuada ou consensual – se revelou areia demais para o caminhãozinho da imprensa diária, compelida a ir atrás do urgente, como é inevitável, e sem meios ou ‘vontade jornalística’ de buscar ao mesmo tempo o importante (aquilo que ficará, na frase clássica, como o primeiro rascunho da história).
Era de esperar, portanto, que as semanais voltassem a fazer o que tantas vezes já fizeram – e para o que nasceram, desde a primeira delas, a Time, nos anos 1920: separar o que é notícia do que é ruído (conforme um antigo slogan da mesma revista) e dar ao leitor, na segunda seguinte ou na véspera, um panorama o quanto possível consistente e enriquecido de dados novos do que vale a pena reter do turbilhão dos 7 dias anteriores.
Oportunidade desperdiçada
Mas o que a Época, a Veja e a IstoÉ – do pior para o menos pior – deram da mais recente erupção do inesgotável caso Herzog foi um vexame técnico e ético. Pela platitude e completa ausência de perspectiva dos seus parcos textos e pela atitude sarcástica, beirando o deboche, com que trataram do assunto.
Na Época, que matou o Vlado e seus novos desdobramentos em duas notas, uma delas intitulada ‘Mico da semana’. Na Veja, a matéria que reduz os acontecimentos a pó de traque, com a frase ‘nada era o que parecia ser’, recebeu o título ‘O pastelão da semana’.
As fortes críticas à primeira nota do Exército e a confirmação de que o comandante da Arma, general Francisco Albuquerque, ao contrário da versão oficial, leu e aprovou o texto de apologia à ditadura, e de que Lula tinha a intenção de demiti-lo, bem como ao ministro Viegas, não absolvem a Veja da oportunidade desperdiçada de garimpar uma senhora matéria – um ‘tudo sobre’, no jargão das redações – como se esforçava para fazer numa situação dessas em tempos idos e esquecidos.
Mesmo o trabalho mais extenso e que menos deixa a desejar, de autoria de Luiz Cláudio Cunha, da IstoÉ, trouxe o título depreciativo ‘Trapalhadas históricas’.
O artigo, embora tenha comprado por inteiro a versão da Abin de que Vlado não está em nenhuma das fotos infamantes, avança na descrição dos bastidores da segunda nota e introduz um novo personagem na história (além do ‘aparentemente desinformado’ Albuquerque e do chefe do Centro de Comunicação Social do Exército, general Antonio Gabriel Esper, de quem os jornais já se tinham ocupado): o chefe do Estado-Maior da Força, Antonio Apparício Ignácio Domingues, recém-indicado por Lula para o Superior Tribunal Militar, dependendo de confirmação do Senado.
Domingues, ‘definido pelos colegas como ‘um dinossauro da linha-dura’’, informa o texto, teria sido o responsável pelo tom da primeira nota ‘que atropelou Albuquerque’ (o que não é verdade) e ‘espantou o país’.
Com mais tempo para apurar, os semanários poderiam ter lançado alguma luz sobre diversos problemas importantes nos quais os diários tropeçaram, ou criaram, ou ignoraram, ou abordaram de forma insatisfatória.
Três outras fotos
Começando pelo fim. Em um trecho de sua coluna, o ombudsman Marcelo Beraba escreveu:
‘Segundo o diretor de Redação do ‘Correio’, Josemar Gimenez, Clarice pediu a vários amigos comuns que o jornal evitasse publicar fotos que mostrassem Herzog sendo torturado. Havia a informação de que o ‘Correio’ tinha mais fotos além das que publicou. ‘Disse que não tínhamos mais fotos e, se tivéssemos, não publicaríamos. Não daria fotos muito chocantes, mas mostrar a foto do Herzog preso e humilhado nos porões da ditadura, reconhecido pela Clarice, é importante e inédito, o que dá a grandeza da informação. E acho muito importante poder contar a história política do país.’
Até onde sabe este leitor, o que se pediu a Josemar foi que, para poupar Clarice e os filhos de Vlado, o Correio deixasse de publicar não fotos dele ‘sendo torturado’, mas três em que, salvo um enorme mal-entendido, ele aparece morto – de cuja existência e detalhes se soube a partir do próprio Correio. Ele concordou.
Mas a sua resposta transcrita por Beraba deixa margem a dúvidas na passagem ‘…se tivéssemos, não publicaríamos. Não daria fotos muito chocantes…’
Na relação publicada domingo pelo Correio dos ’47 documentos selecionados no lote entregue [pelo cabo reformado e antigo araponga] José Alves Firmino’ à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados ou ‘entregues diretamente ao Correio‘, o item 31 é descrito como ‘fotos de um homem nu e humilhado no DOI-Codi de São Paulo, a quem Clarice Herzog aponta como seu marido, Vladimir Herzog’. Ou seja, dele vivo.
A importância da questão é óbvia: se o Correio tem fotos de Vlado morto, do mesmo grupo de documentos procedente de Firmino, como se interpretou, seria a prova de que o jornalista é quem aparece pelo menos na foto aceita por Clarice e de que o ex-cabo ou a pessoa não identificada que passou o material examinado pelo repórter Rudolfo Lago misturou Herzog e D’Astous em um único lote.
Protegendo o Exército
Adiante. Na sexta e no sábado, a Folha e o Correio publicaram duas matérias que praticamente imploram por ‘maiores detalhes’.
A primeira, de Iuri Dantas e Fernanda Krakovics, sustenta que setores de Inteligência do Exército ‘possuem cópias do relatório que investigou o padre (…). O problema é que, se o Exército disser que as fotos não mostram o jornalista, e sim o padre, estará admitindo que ainda hoje guarda arquivos sobre a repressão política no regime militar’.
Isso bate com o que o ‘agente Marcos’, o cabo reformado José Alves Firmino, teria dito ao Correio dois antes: tudo foi microfilmado e tem endereço certo, o Centro de Inteligência do Exército.
Já o repórter Luiz Carlos Azedo escreveu no Correio que a versão da Abin sobre a identidade do homem das fotos ‘foi produzida mais para confundir do que para explicar’. Segundo ele, ‘a comunidade de informações exigiu a contestação de que as fotos eram do jornalista’. E mais: a nota, preparada pelo general Jorge Armando Felix, ministro de Segurança Institucional e seu colega da Casa Civil, José Dirceu, teria sido ‘assumida pela Abin para não expor ainda mais o Exército’.
Nenhuma das matérias dá ao menos uma pista das fontes em que se baseiam. A primeira do gênero, de Tânia Monteiro, no Estado de quinta-feira, pelo menos cita ‘militares de alta patente da ativa e da reserva’ para os quais o episódio ‘enfraqueceu o comandante do Exército’. É significativo o comentário de um militar sobre a segunda nota: ‘O remendo ficou pior do que o soneto’.
Em todo caso, quem prestou o melhor serviço ao leitor nesse departamento foi o colunista da Folha Josias de Souza, com a sua matéria ‘Exército diz que queimou arquivos, mas não prova’. Josias informa ter tido acesso a textos sigilosos que autorizam dizer que ‘a história da repressão política pós-64 permanece guardada nos cofres das Forças Armadas’.
Pé ante pé
Outra grossa questão em aberto é a do material levado por Firmino à Comissão de Direitos Humanos, em 1997. À época, como oportunamente lembrou Marinilda Carvalho na edição anterior deste Observatório, os jornais extraíram dali o mais quente: as evidências de que, mesmo em junho de 1995, dez anos e cinco meses depois do restabelecimento do governo civil no país, o Exército ainda fazia espionagem política, arapongando, por exemplo, um encontro petista em Vitória, com a presença do futuro presidente Lula.
E ponto, parágrafo. Isto feito, a imprensa como que saiu pé ante pé do recinto onde estava o papelório trazido pelo agente arrependido para não perturbar o seu repouso – que se transformou em sono profundo de longos sete anos.
‘As caixas continuariam esquecidas’, revelou Marinilda, ‘se o jornalista Davi Emerich, assessor de imprensa do deputado Roberto Freire, presidente do PPS, que conhecia seu conteúdo e andava inconformado com a desimportância atribuída à papelada, não atraísse à pesquisa o repórter Eumano Silva, licenciado do Correio Braziliense para escrever um livro sobre a guerrilha do Araguaia’.
Agora, os jornalistas pelo menos poderiam contar com começo, meio e fim a história do escandaloso descaso com que parlamentares de uma comissão de direitos humanos (!), um ministro da Justiça ligado à Igreja e um presidente da República que certa vez foi levado a conhecer as amenidades do ‘Tutóia Hilton’ trataram os documentos a que tiveram acesso.
Com a mesma frieza, a imprensa registrou a patranha difundida pelo atual presidente da Comissão, deputado Mário Heringer, do PDT mineiro, de que tudo tinha ido parar no Centro de Documentação da Universidade de Brasília.
Salvo engano, só o Correio foi checar a história com o diretor do centro, que desmentiu a versão. O jornal cumpriu a obrigação de registrar, no pé da materiola, que ‘segundo assessores, Heringer se confundiu ao dizer que os originais tinham sido enviados à UnB’.
Que general, que jornal?
Já as entrevistas que toda a grande imprensa fez com Firmino, além de evidenciar os sintomas persecutórios do entrevistado – embora a ele pareça aplicar-se o dito de que até os paranóicos têm inimigos de verdade – ficaram longe de render o que poderiam.
À Folha ele se refere ao comentário de um general sobre a fala de Lula, em um espionado evento petista em 1993. Que general é esse ele não disse nem lhe foi perguntado.
No mesmo pingue-pongue, Firmino conta que agia disfarçado de repórter de um jornal de Marabá, no Pará, cujo nome ele disse não recordar, ‘ligado aos órgãos de informação, se não for do próprio Exército’. Não seria tarefa sobre-humana a Folha dar uma rasante sobre a imprensa da cidade para identificar o jornal-araponga, se é que ainda existe.
Ao Estado, Firmino disse que em 1997 o seu chefe era o major Alberto Forrer Garcia. Hoje coronel, esclarece o texto, Forrer ‘trabalha na Subseção de Operações do Exército e é cotado para ser promovido a general’. Não há indício de que o jornal tenha tentado falar com o oficial.
Mais de uma semana depois que o Correio começou a publicar a série ‘Arquivos da repressão’, a questão central tornou-se a abertura, ou não, dos arquivos da repressão.
O Estado de segunda-feira revela que, numa festa, Lula disse aos chefes militares que para ele ‘não tem problema’ manter trancados os documentos do regime. No mesmo dia, o ministro da Defesa, José (‘não tenho motivação’) Viegas, diz na Folha que ‘alguma mudança será necessária’ na lei que impede o país de conhecer tais documentos.
Quem tornou a barreira intransponível, como a imprensa não deixou de registrar, foi o presidente Fernando Henrique. Quatro dias antes de se despedir do Planalto ele assinou o decreto 4.553, que ampliou a duração do sigilo dos documentos carimbados como reservados, confidenciais, secretos e ultra-secretos.
Não se sabe segundo quais critérios objetivos uma autoridade pode trancar um documento nessas categorias ou se pode ‘promovê-lo’ de uma a outra. O que se sabe é que os ultra-secretos não podem ser divulgados antes de 50 anos, prorrogáveis por toda a eternidade.
‘Clamor pela verdade’
No sábado o colunista da Folha Fernando Rodrigues lembrou que ‘com uma canetada, o presidente pode revogar ou alterar’ o infeliz decreto de FHC. Lembrou que os Estados Unidos tem, desde 1966, um ‘Freedom of Information Act’, graças ao qual mais de 2 milhões de papéis federais são liberados todo ano do país a pedido de interessados.
O tom predominante na mídia a esse respeito – que a levou aos seus melhores momentos ao longo da semana – foi dado pelo título ‘Clamor pela verdade’ do Correio, em reportagem com entidades e figuras públicas que cobram, ‘sobretudo da Abin’, a divulgação de documentos sobre a ditadura.
Nos artigos, quem atirou primeiro foi a colunista Teresa Cruvinel, do Globo, quando, na quarta-feira, acusou o governo de ‘cultuar o silêncio sobre os crimes da ditadura’. Enquanto isso, no Estado, o veterano Flávio Tavares lembrava ‘o exemplo dos militares argentinos’, reconstituindo o processo de sinceramiento iniciado em 1995 com o mea-culpa do então comandante do Exército, general Martín Balza, numa entrevista televisada.
Dois dias depois, também no Globo, Miriam Leitão, em um dos textos mais contundentes sobre as notas do Exército – como os de Clóvis Rossi, na Folha, e de Roberto Pompeu de Toledo, na Veja – vergastou o regime civil porque, ‘por falta de coragem, não fez o indispensável para que o país tivesse um novo começo: requisitar as informações, desmontar o aparelho de espionagem montado na ditadura, assumir o controle, em nome do povo brasileiro, dos arquivos da nossa história’.
Eis aí a essência do que Teresa Cruvinel considera as lições do episódio – ‘inclusive para o jornalismo empenhado em resgatar o passado que o atual governo e os que o antecederam preferem não remexer por razões que agora ficaram claras’.
Por isso mesmo, esse empenho não pode arrefecer.
[Texto fechado às 14h20 de 25/10]