A história é contada por Fernando Sabino (1923-2004). A viúva do poeta Augusto Frederico Schmidt havia procurado um centro espírita com a intenção de obter do falecido o paradeiro de alguns papéis importantes. Em vez dele, apareceu o Jaime Ovalle (também poeta, músico), que se limitou a declarar: ‘Aqui, estamos todos nus’.
Não é uma história triste, tem mesmo algo de bem-humorado, afim ao espírito narrativo de Sabino, mas ainda assim pode ser associada ao horror da foto-choque de Vladimir Herzog encarcerado e nu, publicada nos jornais. É que nós, os pósteros, sabemos que a nudez de Vlado (assim o conhecíamos) era, naquele instante, o prenúncio da morte brutal que se seguiria.
Por que uma foto-choque? A expressão vem de um texto de Roland Barthes, uma de suas ‘mitologias’, glosa de um comentário de Geneviève Serreau sobre a fotografia de Paris-Match em que se via uma cena de execução de comunistas guatemaltecos:
‘Esta fotografia não é de modo nenhum terrível em si mesma, o horror provém do fato de que nós a olhamos de dentro de nossa liberdade’.
Barthes se detém aí sobre as imagens em que o fato surpreendido explode em sua literalidade, ‘na própria evidência de sua natureza obtusa’, porque o natural delas…
‘…obriga o espectador a uma interrogação violenta, compromete-o num julgamento que ele mesmo elabora sem ser incomodado pela presença demiúrgica do fotógrafo (…) A fotografia literal introduz ao escândalo do horror, não ao próprio horror’.
Subjaz à análise do intelectual francês a diferença entre a estilização fotográfica da experiência (freqüente nas cenas posadas, em que fica evidente aquela ‘presença demiúrgica do fotógrafo’) e a literalidade dos flagrantes, a partir da qual se constrói mais fortemente o juízo político.
O fato e a foto
A publicação da foto de Vladimir Herzog agrega valor ao caráter político do jornalismo escrito. Mais do que em qualquer outro meio de comunicação, a foto ignominiosa na imprensa retarda o olhar do leitor, arranca-o da fugacidade das imagens televisivas ou do passeio frenético por janelas virtuais e outdoors, num julgamento destinado a viver mais tempo que a edição do jornal.
Definitivamente inscrita na retina de um leitor que agora pode olhar o horror de dentro de um relativo espaço de liberdade civil, a foto-choque levanta questões radicais: como se tornou possível aquele tipo de horror? A gente capaz daquilo é a mesma que reconhecemos como socius nacional? O Estado de Direito brasileiro já tem alguma coisa de aceitável a dizer sobre a ignomínia?
Aparentemente poucas, estas questões redimem, entretanto, o jornalismo do destino de vitrine de butique a que às vezes parece condenado. Por um momento, nada do desfile de celebridades, nada do último gadget do consumo eletrônico, nada do fisiologismo cínico dos partidos, mas uma interrogação verdadeiramente política, que explode na nudez de uma foto.
É algo análogo ao que sente Tereza, personagem de Milan Kundera (em A insustentável leveza do ser), para quem, desde a infância, ‘a nudez era o signo do uniforme obrigatório dos campos de concentração’. Um claro sentimento de terror, já que essa nudez era o prenúncio de uma morte indiferenciada para todas as que aleatoriamente se encontrassem na fila das mulheres nuas. A nudez em massa equivalia à morte hedionda, e isso sempre foi o motor do choque nas fotografias de Auschwitz. Entre elas e a foto da nudez de Vlado, estende-se o fio da ignomínia.
É, assim, ao escândalo do horror que nos introduz a fotografia de Vladimir Herzog encarcerado e nu. Não é possível olhá-la de dentro do espaço íntimo de cada um de nós sem imaginar, a partir da contração dos músculos do corpo e do rosto que se furtava à câmara, a solidão e o terror que atravessavam a consciência daquele homem de paz submetido ao inclassificável.
Um texto de Elias Canetti (em Massa e poder) traz alguma ajuda:
‘De noite, às escuras, o terror perante um contato inesperado pode chegar a converter-se em pânico. Nem sequer a roupa lhe dá suficiente segurança: como é fácil arrancá-la, como é fácil penetrar até a carne nua, retesada e indefesa do agredido’.
Mas definitivo mesmo é o fato jornalístico da foto publicada; é a evidência de sua natureza obtusa.
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Jornalista, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro