Dia desses, recebi um e-mail com uma lista das mais incríveis bibliotecas do planeta: a de Praga, a Real Biblioteca de Dinamarca, a de São Marcos, em Veneza, a da Universidade de Coimbra, o nosso Real Gabinete Português de Leitura, joia arquitetônica do Rio, entre outras. A mensagem incluía fotos muito bonitas e pensei no esforço de tanta gente, por tantos anos, para criá-las e trazê-las aos nossos dias. São instituições, quase todas centenárias, de países que enfrentaram guerras, catástrofes, crises financeiras etc.
Enquanto me deliciava com o conteúdo do e-mail, pensei também nos esforços individuais para formar bibliotecas particulares. Meu pai, por exemplo, dava a vida por sua bela biblioteca de perfil afrancesado – recheada de obras de Balzac, Flaubert, Moliére, e Maupassant -, que ocupava o principal cômodo de nossa casa, em Copacabana. No fim da vida ele a doou ao Colégio Pedro II, onde estudou.
Era um santuário desenhado para ser, de fato, uma biblioteca caseira, com estantes, cadeira e luzes apropriadas à leitura. Todos os que a conheceram ficavam, de alguma forma, impactados. A quantidade e a organização dos livros dentro de um apartamento, era, é e será sempre algo raro e marcante.
Nada, porém, se comparava à catedral erguida, livro a livro, por José Mindlin, o grande bibliófilo brasileiro. Dono da Metal Leve – uma das maiores fábricas de peças para a indústria automobilística -, Mindlin, com apoio de Guita, sua mulher, dedicou a vida a reunir as mais importantes obras já editadas no mundo sobre o Brasil.
Ele mantinha em sua casa, no Brooklin, algo em torno de 40 mil volumes: livros raros sobre a formação do país, escritos por viajantes que aqui aportaram; os primeiros mapas, diários e originais de obras centenárias, ilustradas manualmente sobre fauna e flora, entre tantas outras raridades. Fazem parte do acervo o texto de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, datilografado e com correções à mão, além das primeiras descrições do Brasil de André Thevet e Jean de Léry.
Não tive o privilégio de conhecer Mindlin pessoalmente; lia e assistia com interesse suas entrevistas e ouvi de Alberto Dines, mestre de várias gerações de jornalistas, relatos sobre a biblioteca. Os dois eram grandes amigos e Dines frequentava a casa do Brooklin também como pesquisador. Ele se referia ao Mindlin simplesmente como “Zé”.
A vida de José Mindlin girava em torno de sua biblioteca, organizada em quatro grandes segmentos: assuntos brasileiros, literatura, arte e livros como objeto de arte. No início dos anos 2000, já com mais de 80 anos, ele decidiu doá-la à USP, o que seria formalizado só em 2006 – quando foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. A burocracia fez de tudo para atrasar o sonho de Mindlin. Doar um bem privado a uma instituição pública no país exige infinita persistência e santa paciência.
Não fosse a burocracia, Mindlin teria presenciado a derradeira e mais importante parte de sua obra: a abertura ao público da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, em março de 2013, num prédio especialmente construído pela USP, na Cidade Universitária, para abrigá-la em sua integralidade. Ele faleceu três anos antes da inauguração. Desnecessário dizer que é visita obrigatória para quem gosta de livros, de Brasil, de história, de pesquisa e, sobretudo, de grandes exemplos.
Mindlin poderia fazer o que bem entendesse com sua fortuna – foi um dos homens mais ricos do país – e decidiu, na adolescência, formar uma biblioteca, sonho acalentado com Guita, sua companheira desde a Faculdade de Direito, que morreu em 2006. Aliás, a paixão de Guita pelos livros levou-a a montar um laboratório na casa do Brooklin para recuperar, encadernar, conservar e manter a biblioteca impecável.
Foram oitenta anos de garimpo, que incluíram um sem número de viagens em busca de raridades, visitas regulares a sebos e contatos com caçadores de preciosidades em várias partes do mundo. O resultado de tamanho esforço é simplesmente espetacular, principalmente num país em que a memória e a cultura recebem pouca atenção. Conhecer a biblioteca dos Mindlin é reverenciar o melhor do esforço humano em favor da sociedade.
“Nunca me considerei o dono desta biblioteca. Eu e Guita éramos os guardiães destes livros, que são um bem público”, disse Mindlin, no ato da doação, justificando o sentido de sua paixão e obra. Embora more no Rio, distante portanto da Biblioteca Mindlin, toda vez que a visito fico em dúvida se é a relevância do acervo ou o belíssimo exemplo do casal o que mais me emociona.
Ao manusear cada obra da Brasiliana dos Mindlin, imagino o trabalho e alegria do colecionador ao encontrá-la, reuni-la e oferecê-la a seus verdadeiros donos: os leitores e pesquisadores interessados na formação do Brasil. Difícil saber o que despertou, em Mindlin, o desejo de fazer da coleção de livros um projeto de vida. Arriscaria dizer que, como meu pai, Mindlin era filho de imigrantes, nasceu em 1916 e se apaixonou tanto pelo país que foi buscar nas fontes originais a história e as histórias do Brasil.
Ele achou muito mais do que buscava: Mindlin declarava ter lido 7 mil dos quase 40 mil títulos de seu acervo. E nisso residia uma questão que tirava seu sono. Para ele, seus livros só faziam sentido juntos: o valor da biblioteca estava no conjunto dos títulos, e não em volumes ou coleções isoladas. Nesse sentido, a doação à USP representava a eliminação do risco de desmembramento do acervo.
A USP, aliás, pegou o bastão e fez sua parte. Além de biblioteca, o lugar funciona como um ativo centro de cultura, pesquisa e produção de conhecimento sobre livros e o Brasil. Há eventos, debates, cursos, exposições e tantas outras atividades regulares. Parte do acervo também pode ser acessada através de buscas digitais, processo iniciado por Mindlin e Guita quando os livros ainda estavam no Brooklin.
Embora não fossem vaidosos, é impossível que José e Guita não tivessem orgulho do que legaram ao país. É um case de contribuição humana e merece ser sempre lembrado. Por falar em lembrança, quem sabe eu não receba em breve um novo e-mail com a relação de importantes bibliotecas privadas que se tornaram públicas, como a de Guita e José Mindlin?
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Bruno Thys é jornalista e sócio da editora Máquina de Livros.