Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A conversa já faz falta!

(Foto: Divulgação Twitter)

Certamente muitos textos de colegas de profissão, de amigos de longa data e de admiradores renderão justa homenagem a Paulo Henrique Amorim, que se foi. Quanto a mim, não ousaria falar dele de nenhum outro lugar senão o que me compete: o de uma leitora. E preciso falar!

Fui assomada pela notícia logo cedo, quando abri o Twitter; em segundos, o Boletim Carta Maior lamentava, curto e solene, sua partida. Nem havia muito mais a ler naquela altura da manhã. E eu logo pensei: essa é sua saída de campo! Desse campo que ajudou a construir, para um jogo que ajudou a inventar: o da interlocução cotidiana na internet.

Não quero que isso pareça simples nem fácil, embora seja de uma clareza meridiana. Nisso me detenho, é meu tributo a esse homem da boa conversa, sempre afiada, sabemos.

Não fui uma fã empedernida, não concordei sempre com ele. Às vezes, até tive raiva no meio de um vídeo que desliguei, escrevi um e outro comentário de embate e muitas vezes retuitei seus tuítes ou, nos velhos tempos dos comentários abertos, repliquei seus posts – dava vontade de conversar com PH! A referência que ele instituiu era essa: não precisava ser uma conversa de live, essa onda (que acho boa!) da pós-tv; ele instituía o sentimento de interlocução, punha-se contundentemente autoral, reclamando na gente a mesma atitude – e disso resultava que todo dia era necessário pelo menos dar uma passada por lá, esse “lá” onde ele estava, nas enquetes, nas reportagens, nos comentários das repostagens, nos vídeos…

Herdeiro de uma tradição jornalística carioca jocosa, debochada às vezes, era sempre elegante, com seus ternos, seus chapéus, os apelidos maravilhosos que dava às figuras midiáticas deploráveis… Assim é que PH era propositivo. Não era dado a ser resistência, era mais insurgência, corria os riscos que sempre se corre quando se opera na direção inversa do reacionarismo.

E, de um tópico a outro, ia se instituindo esse alguém que a gente queria ver o que estava pensando, o que estava dizendo e, muito especialmente, como estava dizendo.

PH criou conceitos fundamentais para descrever o real de nossa conjuntura, como PIG – Partido da Imprensa Golpista. Constituiu, aos poucos, uma comunidade discursiva que conhecia uma certa interlíngua, com codinomes muito expressivos, porque designativos dos malfeitos que caracterizavam seus referentes, e formas peculiares de referir esses malfeitos, tornando cada vez mais sintéticas suas observações, porque balizadas por esse trabalho diuturno de conversa.

Ele também incorporava modos de dizer sugeridos por seus interlocutores, mas não aleatoriamente; transformava-os, de fato, em termos, constituindo uma terminologia que apontava, afinal, para essa tal comunidade, cuja coesão se devia a essa conversa acumulada. No fim das contas, a gente ria muitos minutos de uma meia linha que tanto dizia! Sentidos consensuados na lida da notícia comentada em uma comunidade de leitores (assinantes ou não, diga-se). Um trabalho com a língua raro, sofisticado, de resultado limpo e fino: era essa sua afiação.

Isso vale para entender, enfim, o modo como era autoral. Um autor não é um deus único do qual emana a obra pronta. Um autor, já vividas as tantas feridas narcísicas que vivemos, sabemos bem que é um nó numa rede, importante nó que gere uma rede – de atores diversos, técnicas e normas implicadas, uma complexidade que é preciso gerir. Um autor é sobretudo a gestão que dá unidade ao que resulta como produto dessa rede. O jornalismo de PH era autoral nesses termos, na composição de suas equipes, no seu modo de trafegar dos impressos à TV, e daí aos chamamentos do digital, que foram se diversificando, exigindo ocupações e, mais além, exigindo experimentar ocupações.

E assim PH nunca ficou anacrônico e nem mesmo vintage, embora nunca deixasse de ser aquele que carregava, nas suas cabriolas, uma longa história de jornalismo raiz, uma robusta luta anti-Globo e uns gestos de homem galante, de outrora.

Suas parcerias, suas companhias, as famosas e as dos bastidores, construíram com ele, para ele, nele, essa autoria – todo dia, laboriosamente, assiduamente, incansavelmente.

Pensando nisso, vemos que ele não tinha a menor cara de quem ia descansar uma hora destas, não nestes tempos que vivemos, não nesta conjuntura fervilhante. Tudo nele era participação no fervilhamento. Não espanta que tenha saído subitamente do campo, esse jornalismo de blogosfera que ele tanto contribuiu para legitimar no seu processo de reinvenção constante. O jogo que nesse campo se joga, que requer agilidade e é cheio de surpresas, combina com o susto que tomamos, nós, seus interlocutores, sem poder passar por lá hoje, para ver o que ele disse ao longo do dia sobre tudo o que esse dia, como têm sido os dias, nos impôs.

É esquisito. É como se ele não estivesse mais em casa bem na hora em que toquei campainha. Onde terá ido assim, sem me esperar para a conversa desta tarde?

PH fará falta, muita falta, por seu modo se ser lúcido, por seu modo de ser lúdico, por seu modo de despertar em nós, gostássemos ou não, nossa lucidez e nossa ludicidade. Que falta já faz!

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Luciana Salazar Salgado é professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos.