Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Próxima capa da Veja será psicografada

(Foto: Divulgação Veja)

Foi surpresa entre os jornalistas a capa da Veja, na semana passada, falando de ameaça de atentados contra o presidente Bolsonaro e ministros por um desconhecido grupo radical ambientalista. Nada de concreto justificando tal destaque, surgiram diversas hipóteses: a matéria teria sido plantada por Olavo de Carvalho, seria uma grande fake news destinada provocar apoio ao presidente ou nada disso, apenas uma má escolha de capa.

Qual a aspiração da revista Veja, agora sob nova direção, na concorrência com outras revistas semanais? Virar revista de boulevard ou de mistério, especializada em teorias de complô e conspiração?

A pergunta tem um motivo: a capa preta da semana passada, anunciando o risco de um atentado contra o presidente Bolsonaro e alguns ministros é digna de entrar num livro de receitas de jornalismo, sob o título “Como não fazer uma capa de revista”!

Por que? A fonte é praticamente anônima, nem os repórteres têm uma identificação que garanta a autenticidade da informação. Nenhum jornalista aceita gravar entrevista sem um mínimo de segurança quanto à fonte, que lhe dê a certeza de estar em contato com alguém representativo de um movimento clandestino, de uma organização terrorista, de um porta-voz da máfia ou de alguém portador de informação importante envolvendo políticos, empresas ou partidos políticos.

Uma das máximas básicas do jornalismo é a de que nenhum jornalista é obrigado a revelar sua ou suas fontes de uma reportagem ou entrevista. Porém, e isso é evidente, ele não pode se valer dessa garantia profissional para recorrer a fontes sem credibilidade, basear-se em rumores (mas, nesse caso, terá de citar serem apenas rumores) ou, pior ainda, criar uma reportagem fictícia, imaginária e destituída de qualquer fonte, sem assinalar ser um exercício jornalístico imaginário.

A prosseguir nessa linha editorial, nada de estranhar se uma próxima capa da Veja seja psicografada, revelando ou pretendendo revelar a vida dos mortos no lado de lá. Com uma capa enfumaçada, a manchete diria, por exemplo, “Kennedy conta qual será sua próxima encarnação” ou “Getúlio explica porque se matou e como têm sido suas relações pós-morte com Lacerda”. Juscelino e Jango poderão contar, em entrevista exclusiva, se foram realmente assassinados pela ditadura, como circula entre os vivos.

A reportagem da capa – A ameaça é real, na qual se conta que Veja entrevistou um dos líderes do grupo SSS, sigla de uma bizarra Sociedade Secreta Silvestre, procurado pela polícia, pertencente a um grupo de nome ainda mais bizarro, Individualistas que Tendem ao Selvagem – mais intrigou que informou seus leitores.

O entrevistado, Anhangá, encontrado num site de um servidor suíço, prima por oferecer informações incertas e, por isso, duvidosas, escondidas num obscuro deep web da internet. A regra no jornalismo é a de não publicar tudo quanto não foi ainda apurado pelo repórter ou pesquisador. Na hipótese de haver a possibilidade de ser verdade, a hipotética matéria pode ser publicada, mas no condicional, entre aspas, como se diz, nunca na primeira página como o furo da semana.

Faltou também uma informação mais pormenorizada sobre a investigação policial, como o encarregado principal vê esse tipo de ameaça ligada a grupos terroristas internacionais. Constituem realmente um perigo ou não passam de grupelhos sem expressão? Ou, na verdade, o tal de Anhangá não passa de um farsante, um desvairado mental em busca de notoriedade? Há diversos filmes de ficção nos quais o personagem principal, maluco, desafia a polícia com ameaças de grandes atentados contra a população.

Atentados em defesa de animais e da natureza

Não é inimaginável um atentado ecologista contra o presidente e alguns de seus ministros por desrespeitarem o meio ambiente. Porém, um tanto improvável, mesmo se empresas abusam ou fazem má utilização dos recursos naturais, provocando desastres ambientais como em Brumadinho. Ou se garimpeiros envenenam as águas dos rios da região amazônica com mercúrio. Ou, ainda mais grave, se o desmatamento pode acelerar o aquecimento climático no nosso planeta e ameaçar a sobrevivência da espécie humana.

Têm havido atentados esparsos – sempre, porém, em defesa de animais presos em laboratório para experiências medicinais ou para vivissecção. Existe mesmo a Frente de Libertação dos Animais, criada em 1976 na Inglaterra e levada depois para os Estados Unidos. O objetivo inicial do primeiro grupo, criado em 1964, era o de impedir a caça aos animais. Os primeiros atentados consistiam em sabotar os veículos usados pelos caçadores. Em 1973, o movimento passou a incluir o combate aos maus tratos e à vivissecção dos animais, incendiando inicialmente um laboratório da Hoechst em construção.

Pelo menos dois livros importantes tratam do tema: Ecoterrorismo, de Éric Denécé, e O perfume de Adão, de Jean-Christophe Rufin, ambos franceses. O primeiro trata do risco de fanáticos ecologistas desencadearem ações semelhantes às dos islamitas da jihad, mesmo sendo em pequeno número. O segundo é um romance, onde o grupo que milita contra a utilização de animais nas pesquisas acaba planejando atentados contra a humanidade. O final do livro se desenrola no Rio de Janeiro, onde viveu o autor.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Foi criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.