Na última semana, a mídia alemã destinou seu foco para duas pautas: uma delas, a presença da chanceler Angela Merkel na abertura do Festival de Música de Wagner, na cidadezinha de Bayreuth, sul do país. Com esse evento protocolar inicia-se, tradicionalmente, o período de férias da chanceler. Como ela apareceu sozinha, sem o marido – o professor e doutor em Química Joachim Sauer -, as especulações sobre o andar do casamento e por que ele não teria estado ao lado da amada em evento de tal importância ocuparam o país durante dois dias. Os ataques de tremor renderam muitos cliques, então por que não emendar logo na pauta das férias da chanceler, que precisa descansar de sua vida tão agitada? Assim foi a lógica pueril do tabloide Bild.
Para decorar as manchetes, o tabloide alistou os lugares preferidos de Merkel para passar férias. No início da noite da abertura do festival, o jornal “tranquilizou” os leitores avisando que o marido de Merkel chegou mais tarde na cidade de Bayreuth e “foi direto para o hotel”, momento para a “cozinha das fofocas” (Gerüchteküche, como chamada no jargão midiático) agilizar.
Em conversa com políticos da notória, rica, igualmente poderosa e decadente elite bávara, que marqueteia o ilustre festival como “vitrine para o mundo” (e, da perspectiva bávara, ele é bem pequeno e pode significar Berlim), Merkel teria conversado sobre o início (os velhos tempos) de seu casamento, o que alimentou especulações sobre como seria o estágio atual da vida a dois. O tabloide também divulgou que a chanceler havia reservado ingressos para o espetáculo na noite de segunda-feira (29), o que assegurava sua permanência, por alguns dias, na cidade bávara.
O casal Merkel & Sauer consegue ser ainda menos interessante e ter ainda menos cumplicidade e química do que a dobradinha Bruno & Paloma em Amor à Vida, novela global de Walcyr Carrasco. Mesmo assim, pautas com a chanceler são sempre um bom gancho para incontáveis desdobramentos. Já que os ataques de tremor se tornaram raros, cutucar a vida pessoal da chanceler usando a ausência do maridão no tapete vermelho em Bayreuth mostrou-se um gancho propício e muito bem-vindo. Inusitado o artigo não ter feito nenhum comentário sobre o guarda-roupa mais do que infeliz da chanceler: o blazer de manga e saia longa em cor verde-abacate com glitter (numa tarde de temperatura chegando a 38 graus) e o andar desengonçado da chanceler ao lado do ministro da Baviera e sua esposa foram ignorados pela imprensa, assim como o relevante fato de que a chefe do governo faz questão de pagar os ingressos com dinheiro do seu próprio bolso.
Para preencher o período que o jargão midiático chama de “buraco de verão” (Sommerloch), época de seis semanas de recesso parlamentar e férias escolares, os jornais ainda publicarão fotos da chanceler sentada em algum lugar na Áustria, lendo algum jornal em frente a algum quiosque.
A outra pauta que dominou a imprensa alemã na última semana foi a nomeação de Eduardo Bolsonaro, o filho mais novo do presidente (que acaba de completar 35 anos, idade mínima para obter uma nomeação), para ser representante do Brasil no além-mar. Neste caso, a capital dos EUA, Washington D.C.
De olho no Brasil
Desde o início sistemático do desmantelamento do estado livre e democrático como conhecíamos, a imprensa alemã vem pautando quase diariamente assuntos da política brasileira, sendo a pauta mais veiculada o galopante desmatamento da Amazônia. Com o calor recorde na Europa (em várias cidades da Alemanha, a marca de 40 graus foi quebrada na última semana e a França registrou a temperatura mais alta de todos os tempos), veículos da imprensa entram em verdadeira competição para ver quem tem mais entrevistas com especialistas em meio ambiente e com meteorologistas. A Amazônia, pulmão do mundo, é sempre gancho dessas matérias.
A intensidade com que se vem reportando sobre a situação política do Brasil é novidade no circo midiático das terras daqui. Isso ocorre, decerto, devido à ainda regente consternação dos alemães em como a situação no Brasil pôde desandar dessa forma e chegar ao patamar em que está hoje. Essa perplexidade gera, automaticamente um interesse que não é “somente” de âmbito midiático. Não há um encontro com amigos em que eu não fique involuntariamente na berlinda para explicar a atual situação do Brasil. Recentemente, num lado isolado e dentro de uma floresta, em companhia de um grupo de ambientalistas e naturistas, um amigo meu, professor de história para o ginásio, me surpreendeu com conhecimento detalhado sobre o andar da carruagem no Brasil. Em conversa que durou mais de uma hora e meia, ele questionou sobre a escolha da vice de Haddad para disputar as eleições. Manuela D’Ávila seria muito radical – e ele delineou e questionou com surpreendente coerência se não teria sido melhor escolher uma pessoa mais aberta para o centro, para angariar eleitores do “outro lado”. Essa situação foi especialmente surpreendente pela sede que ele tinha em saber mais detalhes dos atuais desdobramentos de medidas de governo, mas essa cena, com nuances mais e menos intensas, se repete sempre. Dentro e fora de florestas. Nunca se discutiu tanto a política brasileira na Alemanha: entre jornalistas, entre amigos (até mesmo dentro de uma floresta sem internet) e nas mesas dos bares e cafés. Em entrevista realizada com exclusividade para o site Diário do Centro do Mundo com Gilberto Gil, em sua recente passagem por Berlim, a persistente consternação também foi tema.
Vetternwirtschaft/Nepotismo
Todos os meios de comunicação, entre jornais e TVs, criticam a nomeação do filho mais novo do atual presidente.
O jornal Die Welt (O Mundo), de centro-direita, pecou pela incapacidade de diferenciação, fazendo uso de eufemismo e denominando o atual presidente como “direitista”, ao contrário de outros veículos que classificam Bolsonaro como de “extrema-direita”, como o principal jornal de TV do país, o Tagesschau (Espelho do Dia). “O presidente direitista Jair Bolsonaro quer fazer de seu filho, Eduardo, embaixador do Brasil nos EUA. O político de 35 anos já obteve sua nomeação. No Brasil, ele é a favor da volta da pena de morte.”
Já o portal Spiegel Online, do espectro da esquerda liberal, e que tem o jornalista Jens Glüsing como correspondente na América do Sul, pautando frequentemente do Rio de Janeiro, foi mais direto e feliz na formulação do subteaser: “O presidente do Brasil Jair Bolsonaro cumpre o que prometeu. Eduardo deverá ir para os EUA. Isso significaria a ascensão de um político que mantém relações com grupos de direita.”
N-tv, emissora de notícias em TV aberta e liberal centrista, veiculou a notícia em seu portal com o seguinte subteaser: “Com essa decisão, o presidente do Brasil irrita a oposição ao mesmo tempo em que deixa felizes as direitas dos EUA. Seu filho, Eduardo, representará seu país em Washington. Para isso, ele pode contar com o apoio de famosos ultranacionalistas.”
O portal da emissora Deutsche Welle, em artigo com a pergunta “Filho de Bolsonaro como embaixador nos EUA?”, perde a chance de ironizar a nomeação ao mencionar que Eduardo “tem qualificação inusitada” e cita, entre outras, saber “fritar hambúrguer”.
No terceiro parágrafo do artigo de autoria de Thomas Milz, explica que, nos últimos anos, esse cargo em Washington era ocupado por “top diplomatas de longa carreira” e diz que, no âmbito da política externa, a nomeação coloca o governo brasileiro no mesmo patamar de ditaduras como Arábia Saudita e Uzbequistão.
A matéria ainda conta com o respaldo do analista político Thomas Jäger, da Universidade de Colônia: “Que um presidente coloque seu filho para o principal cargo que um embaixador pode ter (Washington) seria infactível em países europeus. Neste caso (específico), não se falaria de uma relação de lealdade e confiança, mas de intransparência e nepotismo”.
O tabloide Bild (populista e de centro-direita) veiculou manchete que é um eye-catcher: Nomeado embaixador: “o Trump dos trópicos” envia o filho para os EUA. Na primeira parte do artigo, deixou de lado maiores análises, focando nos chamados “fatos secos”, disponibilizados pelas agências de notícias. Na segunda parte, inusitadamente, não temeu os detalhes. Em formato de check list, para facilitar para os leitores, o jornal explica “Como é o filho do presidente?”, explicando que, em 2018, ele acompanhou o pai em sua visita a Washington, onde também encontrou Steve Bannon (ex-conselheiro chefe de Trump e articulador do The Movement). Ainda citou a intenção de Eduardo em implementar a pena de morte no Brasil, sua “simpatia pela ditadura militar no Brasil” e seu “desagrado” pela aprovação da criminalização da homofobia pelo STF.
Na semana que se inicia, o fiasco no departamento de política externa protagonizado pelo atual governo ainda continua sendo pauta dos principais jornais alemães. Entre eles, o mais conceituado do país, o Süddeutsche Zeitung, com matriz em Munique. Em artigo veiculado na segunda-feira (29), o título não deixa dúvidas sobre o que o jornal pensa da nomeação: “Fritar hambúrguer como qualificação”.
A intensidade com que a mídia alemã vem pautando temas políticos e ambientais no Brasil em conotação que não poderia ser mais negativa mostra e ratifica o cenário de teimosa consternação sobre a dinâmica política em forma de sobressaltos diários que vem delineando o cenário do Brasil 2019. O mesmo país que já teve o brilhante Celso Amorim no quadro do Instituto Rio Branco, centro de formação de diplomatas do Itamaraty, e até hoje, com nove nomeados para representar o Brasil na capital americana. Todos diplomatas de carreira. A mudança de paradigma, protagonizada por um medida pérfida de nepotismo, é só mais um capítulo da saga que está posicionando o Brasil no patamar da mediocridade e do ridículo, também no âmbito das relações exteriores. Com a nomeação de Eduardo Bolsonaro, além dos diferentes efeitos colaterais mencionados nos artigos veiculados na imprensa alemã, o Brasil adentra o patamar do medíocre e do ridículo. Mais do que isso. A nomeação é intrínseca com a perda vertiginosa de soberania nacional. Bolsonaro é um lacaio de Trump. O filho, lacaio de Bannon nos trópicos.
O resultado do pacto diabólico é previsível e seus desdobramentos já se fazem visíveis, mas só cairá a ficha em Brasília quando começar a doer no bolso dos governantes, já que um país mal representado diplomaticamente fica mais perto da irrelevância no chamado “sinteco político”.
***
Fatima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas cursado na Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.