Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ciência em xeque

(Foto: Agência Brasil – Ricardo Fonseca/MCTIC)

Na última edição do Observatório da Imprensa, escrevi um artigo intitulado Estado laico em xeque, em que aponto como algumas medidas adotadas pelo governo Bolsonaro têm colocado em risco o caráter secular de nosso país (uma das maiores conquistas do sistema republicano). No entanto, conforme podemos constatar nos noticiários, não apenas o estado laico está seriamente ameaçado pelo atual mandato do Palácio do Planalto: a produção de conhecimento científico, condição sine qua non para o desenvolvimento de qualquer nação minimamente moderna, também tem sido colocada em xeque nos últimos meses. Os ataques mais consistentes à ciência tiveram início quando o Ministério da Educação anunciou que cortaria 30% do orçamento das universidades federais, sob a estapafúrdia alegação de que estas instituições de ensino, em vez de cumprirem suas funções sociais, seriam utilizadas para a promoção de “balbúrdias”.

É fato que governos de forte caráter neoliberal, como o atual, tendem a diminuir substancialmente os investimentos públicos no setor educacional. Isso já era esperado. Porém, o que tem chamado bastante a atenção não são necessariamente os cortes de verbas destinadas ao ensino e à pesquisa, mas o questionamento vazio por parte do próprio presidente da República e de alguns membros do governo em relação aos conhecimentos produzido pela ciência.

Preliminarmente, é importante frisar que a ciência não é neutra, infalível ou tampouco responsável por gerar “verdades inquestionáveis”. Aliás, o maior mito moderno é a crença positivista na ciência como solução para todos os problemas que assolam a humanidade. No entanto, o conhecimento científico deve ser questionado com argumentos sólidos e provas bem catalogadas, e não a partir de “achismos”, “suposições” ou “pós-verdades”. É justamente nessa crítica anódina e sem fundamento que se encaixa a postura do atual mandato do Palácio do Planalto em relação à produção do conhecimento científico.

No início de abril, em entrevista à TV Record (uma espécie de “emissora oficial do governo”), Jair Bolsonaro criticou a metodologia de cálculo de desemprego adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que, segundo ele, não condiz com a realidade, pois haveria um número de indivíduos desempregados no Brasil inferior ao mostrado pelas pesquisas. Em resposta à polêmica declaração do presidente, o IBGE apontou por meio de nota que “está aberto a sugestões e se coloca à disposição do governo e dos cidadãos para esclarecimentos a respeito do seu trabalho”, mas destacou que sua metodologia “segue as recomendações dos organismos internacionais”.

No mês seguinte, o governo federal censurou um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontando que cerca de 10% dos brasileiros entre 12 e 65 anos já experimentaram alguma droga ilícita na vida. No entanto, para o ministro da Cidadania, Osmar Terra, os dados, levantados a partir de uma rigorosa metodologia, seriam falsos, pois, segundo ele, “a Fiocruz tem o viés de defender liberação das drogas”. Em entrevista para a Rede Globo, a coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas da Universidade de Brasília (Unb), Andrea Gallassi, disse que “não vivemos uma epidemia do uso de drogas, tivemos um pequeno aumento do uso de álcool a partir dos dados dessa pesquisa. O que tem hoje, então, é um cenário de uso que não surpreende a comunidade científica, uma vez que é um cenário mais ou menos esperado e, portanto, não tem por que, não existe razão, a não ser uma razão ideológica do governo, em negar a divulgação desses dados, sendo que foi uma pesquisa contratada por uma instituição e paga com recurso público”. Enquanto em países sérios cientistas dedicam seu tempo para a produção de conhecimentos, no Brasil eles precisam vir a público para explicar o óbvio.

E a cruzada do governo brasileiro contra a ciência não parou por aí. Em meados de julho, dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontaram um aumento de 88% no desmatamento da Amazônia em apenas um ano. Diante dessa realidade, o governo federal, em vez de se mostrar preocupado com a divulgação de dados tão negativos ou de propor medidas para reverter esse quadro desfavorável, preferiu partir para o ataque ao Inpe. Segundo Bolsonaro, as informações do órgão não correspondem à realidade e o governo “não pode ter órgãos aparelhados com pessoas que têm fidelidade às ONGs internacionais”, [referindo-se ao diretor do Inpe, Ricardo Galvão. Não obstante, o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes (de quem se esperava maior sobriedade), endossou a fala de Bolsonaro e também questionou os dados divulgados pelo Inpe. Desse modo, no melhor estilo Donald Trump, para o governo federal somente notícias de seu interesse são “verídicas”, caso contrário são meras “fake news”.

Até mesmo a grande mídia e personalidades públicas historicamente ligadas à direita condenaram a atitude de Bolsonaro. No Jornal Nacional, Willian Bonner anunciou que, segundo pesquisadores, a precisão das imagens do Inpe sobre desmatamento é superior a 90%. O noticiário global, inclusive, cedeu espaço para que Ricardo Galvão se defendesse das acusações feitas por Bolsonaro (fator suficiente para que internautas ressuscitassem o delirante discurso de que a Globo seria “de esquerda” e “comunista”).

Já a Folha de S.Paulo destacou que o Inpe tem ciência de impacto acima da média e parceria com a Nasa (a agência espacial estadunidense). “O Inpe tem elevada reputação internacional. Utiliza sofisticado sistema de aferição do desmatamento. Possui profissionais de alta qualificação e integrantes de sua diretoria têm sido premiados em avaliações estrangeiras de grande prestígio. Claro, não se pode descartar a hipótese de erro, mas dificilmente será o caso diante da já longa experiência do Inpe no trato da matéria e da robusta tecnologia que emprega, incluindo o monitoramento por satélite”, escreveu o economista Maílson da Nóbrega para a revista Veja. Além do mais, as imagens de satélite divulgadas pelo Inpe são públicas, isto é, qualquer indivíduo pode verificar. Cientistas de todo o planeta tiveram acesso a elas e confirmaram os números divulgados pelo órgão do governo brasileiro. Haveria, então, um complô internacional para insuflar os números do desmatamento na Amazônia?

Por fim, é importante ressaltar que este artigo não defende que recebamos acriticamente os números divulgados pelo IBGE, Fiocruz e Inpe, ou por qualquer outro órgão. Todavia, para se contrapor a um determinado estudo, é preciso, no mínimo, apresentar comprovações sólidas para confrontá-lo. Simplesmente não concordar com algo porque os resultados não me agradam não é uma postura plausível para o século XXI. Em um país onde a educação científica ainda é extremamente deficitária, é bastante preocupante saber que o presidente da República e membros do alto escalão governamental estejam negando o conhecimento científico em prol de suas “próprias verdades”. Se, como diria um velho dito popular, “pelo andar da carruagem se vê logo quem vem dentro”, não seria de se estranhar que, em curto ou médio prazo, teorias como a “Terra plana”, por exemplo, passassem a fazer parte do currículo escolar das aulas de Geografia da educação básica. Seria demasiadamente cômico, se não fosse assustadoramente trágico.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.