Publicado originalmente no Medium.
Desde 2016, a discussão sobre as notícias falsas (fake news) monopolizou, em todo mundo, a atenção dos profissionais da imprensa e do público, mas agora começamos a nos dar conta de que elas não são o maior problema enfrentado pelo jornalismo. As fake news são apenas um componente do chamado discurso, ou narrativa jornalística, que é o principal responsável pela formação da opinião pública.
O discurso pode ser convincente mesmo baseado em notícias falsas, desde que o autor, ou autores, o construa usando fatos, dados, ideias e eventos organizados e publicados, tendo em vista dar a eles um significado específico. Isso é inevitável em qualquer discurso jornalístico, pois ele é sempre construído e moldado conforme a experiência, cultura, conhecimento e condicionamentos empregatícios do profissional da comunicação.
A identificação dos significados embutidos numa notícia, reportagem ou comentário é uma das principais funções do jornalismo investigativo, cuja missão é desconstruir discursos para verificar também a exatidão, relevância, confiabilidade e pertinência dos dados, fatos, eventos e ideias incluídos na narrativa.
Acontece que o jornalismo contemporâneo está muito mais preocupado em flagrar mentiras e meias verdades do que na análise do discurso. A denúncia de falsidades tem um efeito muito mais impactante do que a identificação de significados embutidos numa notícia, em geral um trabalho mais teórico e sujeito a interpretações polêmicas.
A checagem de fatos, dados e eventos é uma obrigação do jornalismo, mas ela por si só não garante a credibilidade do discurso. É necessária uma integração entre as duas atividades, fato que não vem acontecendo na nossa cobertura diária, especialmente em setores como política, economia e até nos esportes.
O discurso jornalístico é que permite identificar o contexto dos fatos mencionados e, consequentemente, o tipo de mensagem (significado) que é transmitido ao leitor, ouvinte ou telespectador. Sem uma definição de contexto, um mesmo fato, dado ou evento pode ter diferentes leituras, dependendo o nível intelectual, grau de informação e experiências prévias de quem acessa um texto, áudio ou imagem.
As modernas teorias da cognição garantem que não há fato ou dado puro, isento de significado, porque eles são sempre percebidos pelos nossos sentidos humanos e ao, serem incorporados à nossa memória, são condicionados pelas informações nela armazenadas. Assim, a identificação de significados passa a ser tão importante quanto a verificação da veracidade de um dado ou evento.
O fenômeno das notícias falsas aumentou a importância da desconstrução de um discurso adotado por autoridades governamentais diante da complexidade crescente de quase todos os temas incluídos na agenda pública. A desconstrução de um discurso é bem mais complicada, demorada e sujeita a muitas controvérsias, razão pela qual a maioria dos jornais confere à atividade uma baixa prioridade para evitar conflitos com autoridades públicas e privadas, deixando o público sem condições de entender uma notícia ou reportagem.
Goebbels revisitado
As estratégias de comunicação adotadas por presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro enfatizam o discurso e minimizam a preocupação com a veracidade de fatos, dados e ideias. Para ambos, e também para seus seguidores, as notícias falsas são toleráveis desde que se enquadrem nos objetivos pretendidos – atitude que passou a ser tratada nos meios acadêmicos pelo neologismo de “pós-verdade”, ou seja, uma “verdade” condicionada por interesses, e não pela realidade. Na política da chamada era da pós-verdade, os fins (discurso e objetivos políticos) justificam os meios (fake news).
O discurso público produzido por presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro, por exemplo, usa intensamente as meias verdades e as fake news, repetidas dezenas de vezes através dos meios de comunicação sem a devida contextualização, até que leitores, ouvintes e telespectadores passem a considerá-las “normais”. É a versão moderna da famosa frase de Joseph Goebbels, o marqueteiro-mor de Adolf Hitler, para quem “uma mentira repetida mil vezes se torna uma verdade”.
O público dos meios de comunicação vai aos poucos se dando conta de que a chamada “guerra da informação”, não envolve mais apenas um confronto entre o verdadeiro e o falso em matéria de notícias, mas uma batalha pela supremacia no discurso, na narrativa. É claro que a denúncia do uso de dados, fatos e eventos falsificados pode desacreditar um discurso, mas como esse geralmente envolve elementos muito complexos, é improvável que as pessoas comuns consigam separar, sozinhas, o joio do trigo informativo.
Com isso, muitos leitores, ouvintes e telespectadores assumem um ceticismo diante do noticiário da imprensa e acabam buscando outras fontes de informação. A migração dos desiludidos é o preço pago por jornais, revistas, telejornais e páginas jornalísticas na web por falhar na identificação dos interesses ocultos na fala de políticos, empresários e formadores de opinião.
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Carlos Castilho é jornalista.