Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

História para não esquecer

Esquecer Tiradentes? Esquecer o nazismo? Esquecer Olga Benário? Esquecer Honestino Guimarães? Esquecer Vladimir Herzog? Sepultar-lhes a memória?

Tudo que Antígona queria era o direito de sepultar o irmão, mesmo expondo-se à ordem e à ira do tirano. Poder prantear os mortos e lhes dar funeral e sepultura dignos sempre foi, em todas as culturas, uma questão de honra. Esquecê-los? Jamais.

Anistia e amnésia são étimos de próximo parentesco, representam esquecimento, na acepção de ‘perdão geral’, mas não significam sepultar com os mortos a sua memória. Cultuar os antepassados faz parte da lembrança e dos ritos religiosos. Esquecer, sim, quando houve anistia, o rancor, o revanche, a intenção da vingança.

Parte da polêmica em torno da pertinência de se ter ou não publicado as supostas fotos de Vladimir Herzog foi alimentada com o argumento, veraz, de que a anistia deve cobrir com o manto dos corações puros as feridas e ressentimentos dos atores de conflitos passados. Conseqüentemente, reapresentar cenários e calvários seria reacender conflitos e perturbar a paz um dia atingida, com muita abnegação, por todos os lados do confronto.

Heróis e mártires

Não se poderia, de fato, reabrir o caso Herzog, entendendo-se, porém, que o jornalista seqüestrado, torturado e assassinado no DOI-Codi tenha sido, efetivamente, um aliado do ‘terrorismo’. Nesse contexto, o caso já estava sepultado, e há muito tempo, razão pela qual houve manifestações de que as fotos publicadas pela reportagem do Correio Braziliense (em 17/10) não acrescentavam novas informações a um episódio ademais encerrado.

Não se pode confundir, porém, o direito e o dever que cada um dos lados envolvidos dispõe de cultuar a memória dos seus entes queridos, ou admirados, pela sua militância, luta, bravura e até martírio – tudo, por uma causa que era ou se acreditava justa.

É nesse sentido que não se deve reabrir o caso Herzog, mas isto não significa que fotos e documentos que por si só têm valor histórico devam ser enterrados. Mais do que foco de afetos, tais achados pertencem mais à história e ao país do que aos segredos do Estado e as condolências das famílias.

Parte da história do Estado Novo se foi com a queima – literal – de arquivos, o sumiço intencional de provas comprometedoras do envolvimento e colaboracionismo de personalidades e intelectuais com a ditadura getulista. O extravio desses acervos beneficiou a reputação de pessoas, mas prejudicou o conhecimento dos fatos.

Herzog, portanto, é parte tão importante da história e da memória brasileiras quanto o foram outros nomes, hoje sagrados e ungidos no panteão dos heróis e mártires da Pátria. Esquecer Herzog seria uma imprudência, seria desaprender uma dolorosa lição.

Significado pleno

Ah! As fotos não eram dele, mas de um padre? Ora, Herzog é um símbolo, possivelmente o mais dramático de tantos casos semelhantes, muitos deles desconhecidos, exatamente porque do fim deles não restaram provas, documentos, fotos, e até corpos – como foi o caso do estudante da Universidade de Brasília Honestino Guimarães, eternamente um desaparecido.

Da mesma forma como se cultua em todas as cidades que passaram por guerras a figura do ‘soldado desconhecido’, Herzog representa uma legião de brasileiros um dia vitimados pela tortura e pela ocultação dos corpos. Nesses casos, os seus familiares sequer passaram pela interdição imposta a Antígona. Na tragédia de Sófocles, Antígona sabe que Polinices morreu em combate, e tudo o que quer é que o morto não seja devorado por cães e aves de rapina, como o determinou Creonte. Antes isto, do que não saber sequer em que vala ou oceano foram atirados os corpos dos parentes.

Algum dia, num futuro distante, quem sabe possamos olhar para os idos da ditadura brasileira pós-1964 e seus cenários trágicos, da mesma forma como hoje olhamos para uma tela de Pedro Américo e contemplamos o absurdo de que um castigo possa ter a dimensão que teve o martírio de Tiradentes, esquartejado, exposto, salgado e amaldiçoado gerações afora (Tiradentes esquartejado, 1893, óleo sobre tela, 270×165).

Esquecer Tiradentes, porém, nunca. Toda paz é leniente, toda perda se perde com o tempo, mas seria ignorância esquecer o sentido pedagogicamente trágico de patologias como o nazismo e a sua lógica de exclusão. E é por isso que não podemos esquecer Olga, Honestino, Herzog e os que eles representam – incluindo, padres, freiras, operários e tantos que tiveram, anonimamente, o seu cruento destino. É por todos eles que os cultos têm o memento dos mortos.

O recente episódio das supostas fotos de Herzog proporcionou, senão um acréscimo, a renovação do aprendizado de que anistia significa esquecimento, mas não falta de memória.

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Jornalista e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.