Não importa se modelo associativo ou padrão pré-estabelecido. ‘Usado principalmente para definir e limitar pessoas ou grupo de pessoas na sociedade’, o uso do estereótipo é motivado, sobretudo, pelo preconceito e discriminação, como consta seu significado na enciclopédia digital, Wikipédia.
Tomando como base o substantivo em questão, quando o jornalista Marcelo Marthe escreve no texto em que assina (edição 2124, 08/08, revista Veja) que ‘o telejornalismo estilo `mundo-cão´ é o prato principal do horário do almoço nordestino’ e que isso ‘se explica pelos altos índices de criminalidade da região’, em outros termos e bastando um pouco de discernimento, ele está criando um estigma preconceituoso acerca dos mais de 51 milhões de habitantes dos quase 1.800 municípios existentes nessa região.
Para entender melhor nosso ponto de vista, voltemos um pouco ao texto de Marthe – que contou com a colaboração das reportagens dos jornalistas Leonardo Coutinho, Luciana Cavalcante, Fernanda Guirra, José Edward, Igor Paulin e Bruno Meier. Nas informações, o jornalista se utiliza dos termos generalistas para tentar explicar as hipóteses içadas sobre a quantidade de programas ‘policialescos’ exibidos no Nordeste, em especial, o ‘expoente da baixaria baiana’ Se Liga Bocão – citado como um dos exemplos, dentre as ‘aberrações’ geradas pelas ‘produções regionais’.
Ranking de homicídios
Seguindo a contramão das ‘produções nacionais das grandes redes’, Marthe diz que a apreciação do nordestino ao estilo citado, exibido dentro do horário que atinge os maiores índices de Ibope na programação das TVs locais, é tida por ‘horário nobre’ dos sítios e que isso faz parte da ‘tradição que remonta à era cenozóica da TV’. Ou seja, os velhos hábitos dos truculentos matutos e flagelados do Nordeste… Eis a chancela discriminatória evidente nas entrelinhas.
O jornalista não conseguiu esconder e deixou escapar sua verdadeira intenção ao traduzir que tal relação pitoresca entre o meio difusor e o expectador nordestino não passam de uma combinação entre baixa qualidade nas produções televisivas e as poucas faculdades intelectuais de um povo.
Um interessante flagrante de contradição da escrita pode ser visto quando Marthe se refere ao programa Sem meias palavras, apresentado pelo repórter Givanildo. Em um mesmo parágrafo o autor cita que ‘o telejornalismo estilo `mundo-cão´ é o prato principal do horário do almoço nordestino. Isso se explica pelos altos índices de criminalidade da região’. Em seguida, diz que ‘as reportagens sobre um certo bêbado Jeremias e sobre o cachorro que faz sexo com uma garrafa pet transformaram Givanildo Silveira em hit no YouTube’. Será que a Google sabe que o seu produto, o Youtube, é assistido apenas por uma fatia do mercado brasileiro? Os nordestinos? Buemba, buemba como diria Simão. O esdrúxulo, caro Marthe, é sucesso em todo o país e no mundo.
Um levantamento da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla) traz uma informação estarrecedora, talvez para os jornalistas – inclua-se aí o editor – da revista Veja:
‘A cidade de Coronel Sapucaia (MS) tem a taxa média de homicídios mais alta do país, com 107,2 mortes para cada 100 mil habitantes. Em números absolutos, a cidade de São Paulo lidera o ranking, com 2.546 homicídios (taxa 23,7), seguida pelo Rio de Janeiro, com 2.273 (37,7).’
Um papel simples e ridículo
É incrível o que revela essa pesquisa, visto que as cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Coronel Sapucaia não fazem parte do ‘mundo-cão’ que assola o Nordeste, mas estão com os maiores índices de criminalidade do país. Para piorar a situação do jornalista de Veja, que parece não ver a realidade da pátria em que vive (se é que ele ainda acredita que SP e RJ fazem parte do Brasil), um dos programas mais popularescos da TV, citado por ele próprio na reportagem, foi ‘exportado’ do Nordeste para as capitais sulistas. O Balanço Geral, do sr. Raimundo Varela. O que existe, segundo informações do IBGE, é um aumento substancial do poder de compra das classes menos favorecidas nos últimos anos. Com isso, criar programas que agradem as classes C, D, e E (que são a maioria nacional) é alvo mercadológico que simboliza lucro. Somente a classe C ocupa aproximadamente 44% dos consumidores brasileiros, colocando-os na mira dos especialistas de mercado.
Muitas empresas de bens e serviços já voltaram suas estratégias e campanhas de marketing para as novas classes de poder. E quem não aderiu ao segmento, logo estará criando perspectivas substanciais para atrair quem está inserido na maior parte da população brasileira consumidora. Essa informação, não presente no texto da Veja, acaba por tornar-se um empecilho para credibilidade de tanta verborragia desnecessária.
As falácias deflagradas em preconceito pela grande mídia acerca do Nordeste e dos nordestinos são recorrentes na história da imprensa e a elas somam-se as evidências de um crime prescrito. É assim na política, no futebol e em todas as outras áreas. A título de exemplo, na segunda divisão do ano passado, do campeonato de futebol brasileiro, parecia ter apenas um time disputando o título, o Corinthians paulista. Esse ano, como de praxe, quem centraliza as lentes e narrativas futebolistas é o Vasco da Gama, enviesando muita espinha de bacalhau na garganta de milhares de torcedores.
O estereótipo utilizado por Marthe e equipe limita 51 milhões de habitantes a um simples e ridículo papel de consumidor da miséria humana. A Veja, mais uma vez, parece desconhecer o público com o qual se comunica. E esquece que esse mesmo público consumidor do ‘mundo-cão’ é responsável por 14% das aquisições da sua própria revista, mais de um milhão de exemplares. Veja só, é mais um exemplo de quem vê o Brasil com a cabeça em Marthe.
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Respectivamente, jornalista e pós-graduada em Comunicação e Turismo e analista de mercado, Salvador, BA