Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Clarices e gorilas

A penúltima semana de outubro começou com três fotos e um fato. Se a vítima das fotos não é, como se chegou a supor, o jornalista Vladimir Herzog, o fato não perde em densidade política e importância jornalística. Pelo contrário, a primeira nota emitida pelo Exército lhe serve como legenda em preto e branco. O que vemos, independentemente de quem seja o homem humilhado, é a tortura em estado bruto. Crime tão imprescritível quanto perene é a convicção dos que o perpetram. Não pode ser objeto de esquecimento, pois, como destacou Herbert Marcuse, ‘esquecer é perdoar o que não poderia ser perdoado se a justiça e a liberdade prevalecessem’.

O trabalho dos jornalistas Rudolfo Lago e Erica Andrade merece destaque pelo que representa. Em tempos de produção de esquecimento, a matéria do Correio Braziliense reafirma a memória como instrumento indispensável à consolidação democrática. Não será fechando os olhos a crimes documentados pelos órgãos de repressão da ditadura que estaremos livres de recaídas autoritárias.

Pelas reações causadas em diversos setores, uma certeza se impõe: é necessário investigar os arquivos dos porões. Tanto os que guardam registros do regime militar quanto os que, certos da impunidade, reiteram que ‘as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas’. O aspecto mais inquietante dessa nota diz respeito ao sensível ponto da hierarquia no estamento. Afinal, o comandante da arma, general Francisco Albuquerque, foi conivente com seus autores ou por eles atropelado? Qual a visão hegemônica dentro dos quartéis?

Só por suscitar essa questão, os dois jornalistas merecem aplausos e distinções honoríficas.

Passado suspeito

Muitos são os temas levantados pela matéria. Se as fotos, e aqui pouco importa se de Herzog ou do padre canadense Leolpod D´Astous, foram garimpadas numa pasta que se encontrava dormitando havia sete anos na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, qual a vontade política daquela Casa em apurar os fatos? Mais, por que não avançam as investigações sobre a guerrilha do Araguaia? Parafraseando versos conhecidos: ‘Quantas guerras teremos que esquecer por um simulacro de paz?’

Preocupantes , também, foram as declarações do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Edson Vidigal, ao participar, sexta-feira (22/10), de cerimônia na Base Aérea de Brasília:

‘Anistia é esquecimento. Não ajuda em nada agora mexer nessas fissuras. Essa história já foi sepultada. O povo foi às ruas, lutou pela anistia, pelo retorno dos brasileiros no exílio. A lei valeu para todo mundo. A agenda dos países é outra. Temos que avançar’.

Será que o magistrado ignora que a Lei de Anistia, de 1979, nada diz sobre tortura? E, como lembra Paulo Sérgio Pinheiro, em seu artigo de quinta-feira (21/10), na Folha de S. Paulo, ‘para a Convenção Internacional contra a Tortura (da qual o Brasil é signatário) os crimes de tortura são imprescritíveis e a impunidade dos agentes de Estado torturadores e responsáveis por execuções sumárias pode a qualquer momento ser colocada em pauta’.

Encontrará a interpretação do Sr. Vidigal acolhimento entre seus pares? Eis uma questão da mais alta relevância.

Se for verdade que o diabo mora nos detalhes, nas redações jornalísticas, deve se sentir à vontade em editoriais ambíguos. Em sua edição de 21/10, o jornal O Globo aconselha em pouco mais de 550 caracteres, com espaço:

Fora do tempo

Melhor teria sido que a primeira nota ficasse inédita.

Já que foi divulgada, pelo menos o comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque, colocou a questão nos devidos termos: a Força lamenta a morte de Vladimir Herzog e a nota, lembra que um alto oficial foi punido por causa do crime e reafirma o compromisso do Exército com a democracia. Merece aplausos.

Não faz qualquer sentido voltar-se a um tempo que ficou na História. A agenda do país é outra e dela não consta o retorno à radicalização ideológica.

O que vem a ser uma agenda? Quem a define? E em que termos? Estes são pontos que precisam de melhor esclarecimento. Se os destinatários do artiguete são os autores da nota do Exército, o jornal manifesta sincera preocupação com movimentos antidemocráticos. Deveria, porém, tornar a interlocução mais clara para o público-leitor. Se o endereça a grupos de direitos humanos desejosos em aprofundar a investigação, faz papel de um conselheiro de passado suspeito. Por que não faria sentido acertar as contas com um período recente da história? Ao não fazê-lo, o jornal não continuaria excluindo do espaço discursivo os que foram massacrados na ditadura?

Quem hiberna

Certamente haveria receio fundamentado. Um retorno ao que aconteceu naquele período poderia revelar como o Globo agiu quando as liberdades civis foram suprimidas. É provável que, em papéis amarelados, reaparecessem editoriais raivosos contra os oponentes do regime militar. Imprecações contra o Comitê Brasileiro de Anistia. Condenações sumárias aos movimentos sindicais e estudantis. Era a ‘agenda’ da época. E nela, as Organizações Globo transformaram o chumbo, elemento metálico azulado, no ouro do império. A grande imprensa foi pródiga em alquimias do gênero.

Parece que a concentração informativa leva ao monopólio da significação. Agenda, governabilidade, revanchismo são palavras de uma novilíngua. Ocultam a própria origem e substituem vocábulos incômodos. Como se vê, foram múltiplos os questionamentos produzidos a partir da matéria publicada pelo Correio Braziliense. Daria um amplo leque de sugestões de pauta.

É fato que veio a segunda nota do Exército. Nela lamenta-se a morte de Herzog e há reconhecimento de que a nota anterior, publicada no domingo, não condizia com o momento histórico. Mas esta foi produto de pressão governamental. A primeira, sem dúvida, é mais significativa. Diz muito sobre as especificidades de nossa fauna. Se, em países frios, durante o inverno, animais que se alimentam de frutas e sementes entram em estado letárgico, aqui quem hiberna são os gorilas. E o fazem por mais de três décadas.

Todo cuidado é pouco. Não dê comida aos animais. Marias e Clarices imploram no solo que lhes restou.

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Professor-titular da Facha, Rio de Janeiro