Rui Martins, que acompanha o Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça, conversou com a diretora do filme A Febre, que está na competição internacional da mostra, e também com seu ator principal, Regis Myrupu, índio Desana da Amazônia brasileira.
Maya Da-Rin, cujo sobrenome nada comum é de origem italiana, levou ao Festival Internacional de Locarno um filme que trata, ao mesmo tempo, da integração do indígena na sociedade e da sua liberdade de retornar às origens na floresta e continuar vivendo segundo as tradições ancestrais num contato direto com a natureza.
O filme é de uma extraordinária atualidade, pois sua estreia e projeção nas telas do Festival de Locarno coincide com assassinatos de chefes indígenas por posseiros e garimpeiros, incentivados por novas declarações do presidente Bolsonaro contra as reservas naturais indígenas.
Quase passou despercebida, no enredo do filme, uma iniciativa do governo Lula: Vanessa, a índia filha do personagem principal, vai deixar Manaus, onde seu pai trabalha como vigia no porto, para estudar medicina em Brasília.
Ela acaba de receber o resultado do vestibular.
O filme não fala, mas, assim como Vanessa, outros indígenas têm podido cursar a universidade graças à criação das cotas para índios e negros, benefício que, depois de tantos cortes orçamentários nos setores da educação e cultura, não deverá continuar com o catastrófico governo Bolsonaro.
Segue a entrevista com Maya Da-Rin, em que ela também fala em desmatamento e no perigo da religião se aliar à política, pois esse governo destruidor das florestas, ameaça às reservas indígenas, só foi eleito por ter contado com o apoio do voto dos evangélicos.
Maya conta, inicialmente, como chegou a imaginar e realizar o filme A Febre, selecionado pelo Festival Internacional de Cinema de Locarno. “Realizei alguns documentários e, depois, dois curtas-metragens que filmei também no Amazonas, na fronteira com a Colômbia e o Peru, em 2006. Realizei algumas instalações visuais e, então, surgiu esse projeto, que imaginei na época dos curtas-metragens.
Durante esse período, fiz amizade com algumas famílias que tinham deixado seus costumes tradicionais para viver nas cidades de Tabatinga, Letícia e também Bogotá.
E foi um contato muito próximo com uma família que deu origem à ideia de fazer A Febre, um filme que conta a história de duas gerações, um pai e uma filha que vivem em Manaus, uma cidade que cresceu muito nos últimos anos. Uma cidade que tinha 200 mil habitantes nos anos 1960 e hoje tem 2 milhões. Cerca de 80% da população do Amazonas vive em cidades, uma população muito urbana, e me interessou contar uma história que se ambientasse nessa paisagem.”
O filme é sobre a conservação da tradição indígena, mas também sobre a integração dos indígenas na sociedade, com a filha do personagem principal qualificada para fazer medicina em Brasília. Estamos vivendo atualmente, no Brasil, uma situação dramática, em que o governo quer integrar os índios à força e eliminar os que não se integrarem. Como vê essa situação?
Esse projeto não é novo, ele vem da época da ditadura militar, projeto integracionista, pelo qual os indígenas deveriam ser assimilados à identidade nacional. Na verdade, havia outros interesses por trás desse discurso de integração. Era o interesse do agronegócio de abrir as reservas indígenas e também para se explorar os minérios.
Existe um interesse econômico muito forte por trás do discurso de que somos todos iguais e que os índios não se diferem dos outros brasileiros. Mas de que brasileiros, os ricos ou os pobres? Porque no momento em que perderem suas terras e não tiverem mais seu território demarcado como reserva indígena, não restará aos indígenas senão passar a ser mão-de-obra, mal paga, muito barata, a serviço de uma elite escravocrata.
Isso preocupa muito porque toca no fim de direitos alcançados com muita luta e incluídos na Constituição de 1988, agora ameaçados.
Logo depois da descoberta do Brasil, começou a doutrinação dos indígenas pelos missionários católicos. Atualmente, existe um grande empenho pela conversão dos indígenas ao cristianismo feita pelos evangélicos. Como vê esse esforço evangélico dentro do plano de Bolsonaro?
No começo do século XX, houve muito esforço missionários dos salesianos católicos na região do Alto Rio Negro, de onde vêm os personagens do filme. Os salesianos foram muito ativos e criaram internatos. As crianças deixavam suas famílias para estudar nesses internatos. As malocas foram destruídas nos anos 1960 e algumas só agora foram reconstruídas. Mas durante muitos anos não existiam mais malocas indígenas no Alto Rio Negro.
As família passaram a viver em casas e seus rituais passaram a ser considerados como coisas do demônio. Suas línguas não eram mais faladas e algumas acabaram sendo esquecidas – outras se conservaram, como o tukano, que é a língua falada no filme.
Como o filme é falado em tukano, com legendas em português, exigiu um longo trabalho de adaptação e tradução. Os atores ajudaram na criação dos diálogos.
Você falou nos salesianos, mas esqueceu dos evangélicos…
A grande questão é quando a religião se mistura com a política. Respeito todas as religiões. A gente sabe da importância do apoio dos evangélicos na vitória de Bolsonaro. Mas é importante que a gente possa preservar no Brasil a liberdade religiosa.
O filme é falado em tukano, um idioma indígena. Então, será legendado em português?
O filme é falado em tukano e português. Os diálogo em tukano serão legendados.
O filme é sutil, mas deixa bem visível a questão do desmatamento da Floresta Amazônica…
São interesses muito fortes. Faz parte da história das Américas. Os interesses econômicos estão sempre na frente, movendo tanto os projetos sociais quanto os econômicos. Os dados oficiais do desmatamento, este ano, são quatro vezes maiores que os dos anos anteriores. A situação se torna preocupante.
As reservas indígenas são ainda as preservadas sem desmatamento, e isso torna essas reservas muito mais importantes, porque são o lar onde vivem diferentes povos brasileiros, com suas culturas e seus idiomas. É muito importante que esses povos tenham o direito de viver com suas línguas e culturas, muitas das quais já foram exterminadas.
O maior massacre da história foi a colonização das Américas. O número de pessoas que morreu durante a colonização foi maior que o da população na Europa daquela época.
É muito importante preservar os povos que vivem sem ter ainda contato com a sociedade envolvente e respeitá-los para que possam ter o livre-arbítrio de continuar vivendo na floresta ou fazer um contato com a civilização, se quiserem. É muito importante que os indígenas sejam livres para poder fazer a escolha. Ou fazer uma universidade, como a filha de Justino no filme, ou ter uma relação com a floresta, voltar a viver na natureza ou numa aldeia, como o irmão de Justino.
Como vê a situação da Ancine e a ameaça de filtro ou censura prévia para os filmes brasileiros?
Vivemos uma situação preocupante com as declarações de Bolsonaro sobre a Ancine, sobre filmes que não devem mais ser realizados ou que a Ancine não deve mais permitir a realização de filmes que não vão mais na linha dos bons costumes. Já vivemos isso no Brasil e sabemos do que se trata. Mas não é só a Ancine, há muitas áreas da cultura que estão sendo ameaçadas.
ENTREVISTA COM REGIS MYRUPU
Regis Myrupu é o ator principal do filme A Febre, de Maya Da-Rin, presente na competição internacional dos longa-metragens do Festival Internacional de Cinema de Locarno.
É a primeira vez que esse índio Desana da região amazonense participa de um filme como ator. Ele conta como isso aconteceu: “Sou presidente da associação indígena, dedicada principalmente à divulgação das danças. Paralelamente, criei um projeto chamado Floresta Cultural, que procura resgatar, divulgar e conservar nossos conhecimentos ancestrais. Foi nessa condição que fui procurado pela diretora do filme, em busca de pessoas para trabalhar no A Febre.
Ela me perguntou se eu conhecia índios na faixa dos 45 anos. Respondi que não, mas ela achou que eu mesmo tinha o perfil procurado para o filme. Respondi ter 38 anos, mesmo assim ela pediu para eu deixar meu nome com a produção. Deixei lá meu nome e logo fui chamado para fazer o primeiro teste. Notei que Maya tinha gostado, mas havia o problema da idade (Nota: o filme foca duas gerações e o ator seria o pai de uma filha aprovada no vestibular). Minha idade deveria ser suficiente para ter uma filha prestes a ir para a universidade. Depois, fui uma segunda vez, quando fizemos algumas improvisações com outros quatro atores. Lá, ela se convenceu e acabou me selecionando. E aceitei de forma positiva, porque gosto de coisas positivas”.
O interessante do filme é ser falado em parte em tukano, o que exigirá, no Brasil, ser projetado com legendas. Isso deu mais autenticidade.
Quando escreveu o filme, a realizadora colocou a cultura indígena de uma maneira geral. Como fui escolhido da tribo Desana – cada tribo tem uma forma de viver, de se comportar e de se manifestar -, procurei ajudá-la a sair da generalização para o filme ser mais próximo da minha tribo.
Assim, ajudei a fazer os diálogos baseando-me na cultura Desana ou tukano. Eu sou Desana, mas falo tukano, então tudo foi baseado nessa nossa condição. Por isso, ela fez um filme real, muito real.
Regis, os indígenas estão sendo ameaçados. Existe uma política que visa a integração dos indígenas ou sua eliminação do Amazonas e outras regiões. Como vê isso?
Como falei antes, sou portador de conhecimentos ancestrais que passam de pai para filho, então para mim é uma grande preocupação ver essa destruição. Nosso governo está sendo muito cruel com os povos indígenas e está matando.
Ele acha que matar e eliminar os povos indígenas seria a solução para a futura humanidade e sua melhoria de vida. Mas não é assim; eliminando os povos indígenas, ele está eliminando indígenas, não indígenas, a natureza em geral e o próprio planeta. Não haverá mais o passado, nem o presente e nem o futuro. Isso é uma coisa muito séria e precisamos agir logo, já.
No filme, há uma cena em que um dos atores, se dirigindo a você, fala que vivia entre os indígenas, mas que dormia com o revólver porque eles não eram ainda domesticados…
Acho que isso, para nós, é uma piada, porque aquela pessoa que falou isso para mim é um homem convicto de ser civilizado, referindo-se a indígenas como seres ou animais irracionais. Nós temos cultura, nós temos nossos princípios e nossas crença, tudo isso é baseado na natureza, tudo é baseado no equilíbrio. Nós somos um barreira protetora da vida na natureza. E, quando ele fala assim, eu não respondo, porque que sei que se ignorar o que ele está dizendo vai doer muito para ele, mas se eu responder, ele vai ficar feliz. Infelizmente isso existe no nosso dia a dia.
O objetivo do presidente Bolsonaro é o de transformar vocês em civilizados e colocar vocês no mercado trabalho para serem explorados…
Ele quer isso, mas os indígenas não querem ser domesticados porque não são animais que nasceram ali pelas ruas da cidade. Eles nasceram no meio da floresta, onde a natureza é completamente limpa, e não aceitam ser civilizados. Por essa razão, estão sendo eliminados pelo governo, porque o governo não gosta e quer decidir em cima dos povos indígenas. Os indígenas são seres humanos igual ao Bolsonaro.
E, no filme, você volta para a floresta.
Sim, finalmente, depois de minha experiência na cidade, eu retorno para minha casa, com minha mochila, com minhas poucas coisas, mas feliz porque retorno para minha origem, minha natureza, junto da água e com toda tranquilidade. Deixo o estresse para trás e levo minha vida em frente, feliz.
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Rui Martins, do Festival Internacional de Cinema de Locarno.