Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Gilberto Gil na Filarmônica de Hamburgo: imprescindível, urgente e inesquecível

(Foto: Divulgação)

Apesar de oito meses do governo Bolsonaro, os alemães ainda lutam com o sentimento de consternação sobre a dinâmica insana que acometeu o Brasil. E, como a história já nos mostrou várias vezes, nos momentos de triunfo do mediano e do medíocre mostra-se propício o desmantelamento sistemático de tudo o que instiga a subjetividade. Nos tempos mais sombrios da história, é sempre a cultura que nos salva. Durante os doze anos do nacional.socialismo de Hitler (1933-1945), a arte na Alemanha foi dividida em duas categorias: a conforme ao regime e a “arte desnaturada” (Entartete Kunst) – e com esse selo vinha a demonização, como desdobramento.

Em maio passado, durante a palestra do escritor brasileiro Luiz Ruffato em Berlim, a cientista política Claudia Zilla, do Instituto Ciência e Política (SWP, na sigla em alemão), já havia atestado ao governo Bolsonaro “ferramentas fascistas”. A imprensa europeia, em peso, denomina o governo de “extremista de direita” e a galopante destruição da Amazônia é o assunto principal quando se fala de Brasil em 2019.

Naquela noite de domingo, 11 de agosto, na Filarmônica inaugurada em janeiro de 2017, apelidada de “Elphie” e que em dois anos já se tornou a maior atração de Hamburgo, podia-se claramente perceber uma eletricidade no ar, mesmo antes de ter início uma verdadeira peregrinação pelos incontáveis números de escada até chegar ao salão principal. Quanto mais perto do palco é o lugar, mais escadas você precisa subir, algo que ganha o cunho de uma peregrinação, que se executa com paciência para ver Gilberto Gil. Ele voltou para a vida e traz no semblante uma serenidade de quem viu a morte de perto e até mesmo teve uma prosa com ela. Na abrangente turnê que fez pelo Velho Continente e em tempos que regem o ódio e o culto do mesmo, Gil trouxe serenidade, reflexão e uma postura esbanjando dignidade através da arte. Em nenhum momento ele se pronunciou politicamente num discurso acalorado ou até mesmo com qualquer pronunciamento, e o mais irônico de tudo é que sua passagem por Hamburgo não poderia ter sido mais política. Ele falou de sua perplexidade com o ódio nas redes depois de iniciar o show com a faixa carro-chefe do disco OK OK OK.

Le Grande Segneur no palco mais prestigioso e de ímpar relevância urbana cultural do norte da Alemanha teve sua presença sublinhada pelo Zeitgeist, no qual nada remete ao Brasil que fomos antes. Os alemães e os brasileiros foram lá para abraçar Gil e tudo o que ele representa. E o baiano mais cosmopolita do mundo não decepcionou.

Afago na alma
Há tempos, a vinda de artistas brasileiros à Alemanha era, em sua essência, um afago na saudade de quem vive na diáspora, para matar a saudade da terrinha e vê-los cantar as músicas que a gente quer ouvir. Nos últimos três anos, houve uma total mudança de paradigma. A apresentação de musicxs brasileirxs é, quase sempre, um evento político. O diferencial de Gil, além da bagagem musical inquestionável, é que ele foi ministro da Cultura e esse fato torna a sua presença ainda mais relevante.

Ao contrário do que se espera num ambiente elitista de uma Filarmônica, muitos brasileirxs conseguiram adquirir ingressos, se fazendo presentes em cores, idioma e posicionamento. Não faltou o burburinho em português pelos corredores, nem a bandeira verde e amarela e nem mesmo a faixa “Lula Livre”. Por nenhuma coincidência, as duas estavam lado a lado.

Meticuloso ritual
Antes do show, os músicos fazem fila para dar beijinho no mestre, que recebe o carinho dos súditos enfileirados. Isso pode-se ver num post no Instagram de Gil.

O aplauso inicial foi solícito e ainda manteve o protocolo na hora da entrada dos músicos. Alguns segundos depois, Gil – vestindo um blusão e calça de linho de cor bege, concebidos pela estilista Flavia Aranha – adentrou com passos largos e firmes o Olimpo da música erudita com seu violão debaixo do braço, como um trovador ou repentista e seu inseparável instrumento de trabalho. Interpretando a linguagem corporal, a postura de naturalidade foi uma dobradinha de um artista que se sente em casa nos principais palcos do mundo, mas também sabe que tem de ir aonde o povo está.

Gil recebeu aplausos calorosos, mas ainda engessados com a preocupação de pagar tributo ao mestre, mantendo um cerimonial. Ao meu lado estava o jornalista Markus Kritzokat, do jornal Die Welt (O Mundo), que não se continha de felicidade ao obter informações de insider, incluindo o significado do Dia dos Pais no Brasil, bem ao contrário do que significa na Alemanha. Aquele domingo na Filarmônica foi uma celebração da família Gil, que tinha quatro músicos da família no palco.

Quatro pedacinhos foi a segunda canção do repertório de vinte músicas. Depois da execução, Gil fez uma longa explicação sobre a homenagem à médica que “mandou seus colegas tirarem quatro pedacinhos do meu coração. Ainda bem, nada de um problema grave, só problemas normais”, revelou, arrecadando risos da plateia, ainda preocupada com o protocolo de reverência ao grande artista que veio de tão longe.

Antes de executar Yamandu, em homenagem ao compositor e guitarrista Yamandu Costa, nascido em Passo Fundo, sul do Brasil, Gil passou a resenha: “Essa música é em homenagem a um grande guitarrista do Sul. Ele é muito bom”. Mesmo que ninguém conheça esse nome, a plateia se deliciava com as explicações e detalhes de Gil. Detalhes, a paixão secreta dos alemães!

Depois veio a obra-prima na parceria de Gil e João Donato, Lugar Comum, que se mostra com a dinâmica de um bom vinho: quanto mais velho, melhor. O que viria na sequência foi a cereja do bolo e o momento mais sublime do show: a homenagem àquele que foi responsável por Gil ter largado o acordeão e se aventurado no violão depois de ouvir Chega de Saudade na rádio. João Gilberto. Seu discípulo delineou a importância do mestre da bossa nova em sua carreira e na de inúmeros artistas, citando alguns nomes, como os de Caetano Veloso, Carlinhos Lyra e Tom Jobim.

Depois de executar Drão, em voz calma e sem nenhuma pressa, ele explicou: “Fiz essa música para a minha segunda esposa. Mas a próxima (música) não é sobre minhas histórias, é sobre um outra pessoa”, e ratificava seu gesto esticando o braço e acenando com a mão. Foi nessa hora que o jornalista ao meu lado perguntou: “São quantas esposas, afinal?” “Acho que são três”, respondi. “O Google diz quatro”. “Então vai no Google”, retruquei.

O sublime em falar com Deus
O texto da composição dispensa análise, mas a interpretação de Gil de Se eu quiser falar com Deus me fez lutar com o impulso de chorar compulsivamente frente a tanta beleza somada à virtuosidade e ao delinear matemático das sílabas de uma língua de beleza de estontear os sentidos. Decerto que ter visto a morte de perto transforma a interpretação dessa música através da proximidade do tema que Gil delineou em várias entrevistas na TV.

A morte de João Gilberto, há pouco mais de um mês, parece ter ampliado a percepção da canção para o próprio artista e para os ouvidos de quem capta a sonoridade numa sala que se orgulha de ter a melhor acústica do mundo. Que a construção era para ter sido concluída em 2010 e que, ao invés de 789 milhões de euros, tenha custado de fato 866 milhões, são fatos facilmente esquecidos, mas a fatura fecha no concepção de construir “um templo cultural para todxs”.

Banda De Luxe
A meticulosidade dos arranjos alinhavados pelo diretor musical, Bem Gil, e a escolha dos músicos – especialmente Tiago Queiroz no sax (alto e barítono)/flauta e Diogo Gomes no trompete /flugelhorn – fazem uma dobradinha com super groove, incluindo coreografia!

Em dinâmica super bem alinhavada, o repertório foi mexendo com o público sério-über e preocupado com o tributo ao ilustre visitante. O primeiro ápice foi com Nossa Gente (Avisa lá). Os sisudos das primeiras filas, detentores dos ingressos mais caros, levantavam e sacolejavam anos de letargia corporal. Gilberto Gil também cura, minha gente!

Com Maracatu Atômico, de Jorge Mautner, e a linda homenagem ao grande Chico Science, Gil finalizou seu plano de transformar a Filarmônica num “caldeirão de bruxas”. Ele andava em passos largos ao redor da banda, acenava e instigava a dançar e bater palmas todas as esquinas do local. “Canta comigo, Hamburgo!”.

O ápice de uma noite que ficará na retina e nos ouvidos de todos que ali estavam foi com Toda menina baiana.

No camarim, Gil recebia algumas pessoas. Em volta, sempre os dois anjos da guarda: Gilda, a produtora, e Flora, a esposa e empresária de Gil. O visitante conversava, tirava selfies e, ao chegar a mim, ainda em consternação total do que acabara de ver, eu disse: “Você é mesmo uma pessoa muito abençoada para fazer os alemães ficarem dessa forma que acabamos de ver. Em décadas de Alemanha, eu nunca vi isso”. Gil expressou também sua surpresa, não escondendo a alegria pelo êxito. Também para a banda, que se confraternizou com brasileirxs ao lado do ônibus estacionado à beira do porto, Hamburgo foi muito especial, comparando com o resto da turnê. Entre todos os show de Gil que presenciei – nas areias da praia de Ipanema, no réveillon de Copacabana, em Mainz, em Munique, em Montreux e em Berlim -, esse foi o melhor. De todos.

O jornal esquerdista berlinense Die Taz titulou: “Energia contagiante vale mais do que remédio” (em tradução livre).
O jornal regional de Hamburgo publicou artigo com seguinte manchete: “Polonaise pelo grande salão – Defesa da arte”.
O jornal de centro-direita Die Welt (O mundo), cujo autor sentou ao meu lado direito, escreveu: “Com a mente clara e coração aberto”.

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Fatima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.