Quando se dirige aos repórteres, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) costuma aumentar o tom de voz. Não raro, chama de idiotas as perguntas que lhe são feitas. Dependendo do público que testemunha a cena, a cada gesto explícito da falta de educação presidencial ouvem-se palmas e sorrisos ao fundo. Por vezes sai até um “é isso aí, mitooo!”.
Já está claro que o presidente cumpre um ritual: precisa ser rude com a imprensa porque jornalistas e veículos de comunicação o perseguem. E o fazem pelo simples fato de que veio para inaugurar um tempo novo nessa relação, mas, ao contrário do que imaginava, não colhe os elogios que acredita merecer pelo desempenho até aqui. E o que é mais sombrio: ele sabe que essa expectativa é falsa.
Uma narrativa de vitimização é o que podemos extrair desse comportamento. Mas ela é apenas parte da estratégia. A outra consiste em usá-la para esconder o essencial: Bolsonaro ataca a imprensa porque é a maneira de não ser submetido ao confronto com os fatos, em grande parte negativos, que seu governo produz.
Governos autoritários recorrem sempre a essa estratégia, retirada de alguma cartilha de procedimentos antidemocráticos. É a mesma onde se encontra a repulsa pelo saber acadêmico, o culto à anticiência, além do forte desapego à cultura e ao debate de ideias contrárias. Não existe campo tão fértil aos “ensinamentos” dessa cartilha quanto o Brasil de hoje.
Sem mediação
Chamo atenção para o fato de que, ao denunciar os erros que a imprensa comete contra ele, Bolsonaro lança a senha para que seus eleitores entendam ser desnecessário levar em conta o que o jornalismo profissional apresenta como essencial para ser consumido como informação no espaço público. Como a lógica predominante ainda é a da campanha eleitoral, importa somente impor aos seus apoiadores a ausência da mediação própria do jornalismo. Assim, o destino dos relatos noticiosos passa a ser o da lata do lixo. É o recado por trás da encenação de alguém eleito para o cargo de maior autoridade do país.
Bolsonaro não dialoga, propriamente, com seus opositores, mas convoca seus apoiadores para que façam isso. E o uso da agressividade vem reforçar uma repulsa que deseja ver também no seu público. Repulsa contra os “comunistas” e “corruptos”, aqui estrategicamente colocados como sujeitos por detrás da atividade de imprensa, pelo fato de ela constituir-se um elo indesejado com uma realidade que precisa ser desprezada.
Uma vez acirrado o conflito, a rejeição ao noticiário é compartilhada com quem o segue, tendo como alvo um tipo de inimigo comum, a quem ambos agora não só xingam em público, mas perseguem nas redes sociais. E também nos bastidores do poder.
Agressões e demissões
É o que aparece quando olhamos para a reação do governo às críticas que recebe no âmbito da análise política e de opinião na mídia. Desde o início do mandato, já foram inúmeros os casos de comentaristas políticos e jornalistas de opinião que foram destratados publicamente ou tiveram os empregos cortados por incomodarem o presidente em sua atividade na mídia.
Na lista dos defenestrados estão o humorista Marcelo Madureira, ex-Casseta e Planeta (ainda em outubro do ano passado); o historiador, professor e comentarista Marco Antônio Villa; o filósofo, economista e também comentarista Joel Pinheiro. Mais recentemente, entrou na relação o jornalista, editor e comentarista político Carlos Andreazza.
Curioso é o fato de todos eles terem deixado a rádio Jovem Pan, emissora de cobertura ruidosa, que fez campanha aberta, inclusive através de editoriais, pelo impeachment de Dilma Rousseff, pela aprovação das reformas do governo Temer, pela reforma da Previdência e, também, em apoio irrestrito às ações da força-tarefa da Lava Jato e ao ex-juiz Sergio Moro.
O esforço cívico-midiático do “partiu pra cima!” – slogan da rádio contra a corrupção e os desmandos na política – e a favor das reformas deu lugar à covardia pura e simples. A emissora promove (e promoverá sempre) seguidas mudanças no time de comentaristas em claro atendimento às pressões do governo, que age para calar os críticos que ousem ocupar os microfones.
Objetivos
Portanto, Bolsonaro atua, a um só tempo, seja para neutralizar o noticiário contra os fatos que o colocam em xeque, adotando bizarrices diárias e a hostilidade com os repórteres, seja para silenciar as vozes que lhe são críticas. O segundo objetivo vem pelo esforço da subserviência dos empregadores dos próprios censurados, porque é disso que se trata: censura. Gente que não pensa duas vezes para demonstrar seu servilismo em relação ao governo de plantão. E que conta com o silêncio cúmplice da maioria dos outros veículos.
É como se a imprensa estivesse sem alternativas diante de uma relação de poder que em tudo lhe é desfavorável, incluindo as cores de uma crise financeira que também passeia pelas redações e corta postos de trabalho. Soa como se, no que dependeu do seu posicionamento institucional, tivesse a imprensa perdido o feeling para o que ocorria. A polarização política nascida do novo “50 anos em 5”, de 2013 a 2018, levou os veículos a revisarem seus posicionamentos editoriais, seja por questões mercadológicas ou políticas, ou as duas coisas.
No lugar da âncora da imparcialidade, pacto quebrado já na cobertura do primeiro escândalo de combate à corrupção, o do mensalão, entrou em cena um jornalismo que tem lado, opinativo, contundente e de confronto. Que encampou o “vem pra rua!” e levou gente para a rua. Um jornalismo que analisa e interpreta tão profundamente um fato que até esquece de informar suas nuances e explorar seus enquadramentos.
Por vezes, nem se preocupava em comentar um fato em si, mas tão somente especular. Para isso, era necessário interditar a presença de vozes divergentes em uma desejável controvérsia democrática. Foi o que se viu. Programas de análise política, e o próprio noticiário, foram deixando de ser plurais e de terem a preocupação com o contraditório.
Autoritarismo e compromisso
Sim, esse jornalismo também bebeu na fonte da cartilha autoritária já citada. E deu de ombros para o compromisso de o jornalismo servir de palco para o debate de ideias divergentes e representativas das diversas forças da sociedade.
Um jornalismo que, imerso no mundo da influência das redes sociais, onde se opera com ou sem voz própria, reforçou a certeza de que a “verdade” está sempre do lado de quem controla a narrativa e que, a partir dela, a dissemina. Se verídica ou não, pouco importa.
Um jornalismo que passou a reelaborar seu conteúdo e sua oferta priorizando estratégias de sobrevivência em um mercado transformado pela digitalização. Mas um jornalismo que também, em função da sua reação à polarização política, passou a ser identificado socialmente como um tipo de jornalismo partidarizado. Nenhuma surpresa: de tanto que usou do seu esforço interpretativo e opinativo, acabou interpretado e julgado pelo público.
Um jornalismo que, neste momento, ao ser desafiado pela estratégia bolsonarista do confronto, exibe uma constrangedora vulnerabilidade. E ela não se limita à atividade de imprensa, que precisa sempre ser livre para noticiar, criticar e cobrar do governo. Essa vulnerabilidade impacta o próprio compromisso democrático assumido pelo Brasil, interna e externamente, no final dos anos de 1980.
Comunicação e democracia
Não por acaso, dois pontos cruciais dessa perspectiva democrática acabaram se cruzando recentemente. Ambos estão relacionados à comunicação e encontram tratamento constitucional. As já referidas demissões dos analistas e comentaristas políticos chegaram no mesmo período em que a prerrogativa do jornalista em preservar o sigilo da fonte estava sob ameaça de criminalização. Coube ao polêmico ministro Gilmar Mendes, do STF, decidir cautelarmente pela garantia do direito de o jornalista Glenn Greenwald não ser alvo de investigação sob acusação de qualquer crime que tenha como fundo o sigilo da fonte no jornalismo.
A salvaguarda ao editor do The Intercept Brasil, que preserva um dos pilares da democracia constante do jornalismo, não esteve ao alcance dos comentaristas e analistas da Jovem Pan. Foram descartados e, com eles, o direito de crítica e de manifestação do pensamento que existe como direito da sociedade. Como tal, possui como único balizador a responsabilização posterior por eventuais excessos cometidos. A diferença é que o que diziam e julgavam todos esses anos, muitas vezes em desfavor da diversidade de vozes, não era recebido como uma ameaça ao governante de turno.
Os tempos são outros. O que antes nem merecia atenção, mesmo que em postura claramente antidemocrática, agora já pode ser sentido por toda parte, ameaçando a(s) liberdade(s) como um propósito de governo. O sopro, ajudado na imprensa por quem agora também é vítima dele, foi elevado à categoria de uma grande ventania autoritária. E que ameaça varrer o jornalismo e a democracia.
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Fabiano Mazzini é jornalista, professor do Curso de Jornalismo do Centro Universitário Faesa e mestre em História pela Ufes.