Em artigo veiculado em 19 de julho em seu blog no UOL, o ex-deputado do PSOL, Jean Wyllys, atestou um “Brasil de Bolsonaro fora de si”. A dinâmica dos tempos de pós-verdade em que vivemos não perdoa. Desde o “dia do fogo”, a Floresta Amazônica está em chamas. Pior: a casa está caindo.
No preâmbulo da cúpula do G7 em Biarritz, na costa francesa, o anfitrião Emmanuel Macron declarou: “Nossa casa está em chamas”, declaração logo ouvida e ratificada em Berlim. Em vídeo na sua homepage, a chanceler alemã Angela Merkel ratificou a opinião do colega francês, além de garantir “falar sobre o assunto” durante os três dias da cúpula.
Quando a hashtag #PrayforAmazonas chegou ao topo dos assuntos mais falados no Twitter alemão na quarta-feira (21), a mídia — a séria e a de sátira política — começou a lançar artigos e vídeos no Facebook. Depois do programa de sátira política Extra3, onde foi taxado de “idiota de Ipanema”, Bolsonaro chegou ao ápice e foi “homenageado” pelo programa líder de audiência no segmento de diversão/sátira política, o heuteshow da rede aberta ZDF. Paralelamente e quase de forma simultânea, a imprensa alemã começou a pautar o Brasil diversas vezes ao dia.
O tabloide Bild divulgou no seu portal, na noite de domingo (25), ter enviado oito repórteres para a região de risco e prometeu transmissões diárias “diretamente da fonte”.
Uma colega americana, atuante para a Agência de Notícias Alemã (DPA, na sigla), parte na terça-feira (27) para o Rio de Janeiro, para uma estada de dois meses. No encontro de despedida, na segunda-feira ensolarada com 30 graus em Berlim, ela, surpresa como se acabasse de receber a notícia, terá que, além de Rio e Brasília, voar também para a região da Floresta Amazônica.
No noticiário mais importante da Alemanha, o Tagesschau (Espelho do Dia), em horário nobre, a âncora Susanne Daubner divulga a reação de Bolsonaro, via Twitter, mais uma vez atacando o presidente francês depois de ter zoado sua esposa. A jornalista enviada para o Brasil e que, geralmente, pauta diretamente do Rio de Janeiro, Marie-Kristin Boese, reporta de Rondônia. Junto com as tomadas do local do desmatamento, que ela compara com “a superfície da lua”, são editadas, de forma inflacionária e independente da emissora, imagens de um presidente Bolsonaro com sorriso largo e cumprimentando com aperto de mão forte e decidido os militares. Na noite de sábado, o presidente do Brasil chegou a liderar o teaser de imagens do noticiário principal, às 20 horas, até mesmo antes de Trump e Macron.
O desgoverno do Brasil conseguiu se tornar um problema que atinge e consterna o mundo inteiro. Em termos de relações públicas, durante o G7, o Brasil ficou igualado ao Irã, um país que é sempre uma ameaça, sempre um problema. E lembrar que o Brasil já até atuou como mediador entre a comunidade internacional e o país produtor de quantidades sempre ameaçadoras de urânio.
Na edição de 26 de agosto do noticiário Tagesschau, do conglomerado de emissoras ARD, foi veiculada a reação de Bolsonaro depois de obter a notícia de que o G7 havia fechado um pacote de 20 milhões de dólares para ajuda imediata no combate ao incêndio. A resposta, via Twitter, não demorou. Mantendo-se fiel em sua retórica de homem medíocre e ignorante, Bolsonaro acusou Macron de se comportar como se o Brasil fosse “uma colônia” e ainda questionou os motivos nobres do grupo do G7.
A ajuda financeira oferecida por Israel e pela Argentina, Bolsonaro aceita com gosto. Matthias Ebert, outro correspondente da ARD, foi até Porto Velho, Rondônia. A âncora pergunta “quanto tempo irá durar para que o incêndio seja apagado”. “Pelo meno um mês”, esclarece, mas não sem afirmar e reafirmar que “depois dos bombeiros viajarem 6 horas pela estrada, ainda têm que enfrentar 3 horas de floresta até chegar ao local”.
O tabloide Bild usufruiu da tecnologia das imagens feitas pela NASA.
Poucas horas depois, o tabloide foi taxativo, de forma que até mesmo o povão e o cidadão mais avesso à política entenderam que o Brasil está afundado no militarismo — e divulgou a ida dos fardados para a região, a mando do presidente.
O francês Libération alfineta também os hermanos: “A Amazônia e a Argentina: os grandes delírios de Bolsonaro”, referindo-se à preferência declarada do presidente do Brasil pelo atual presidente e candidato a reeleição, Mauricio Macri.
No calor das emoções do G7, que Macron já começou a esquentar antes do início oficial e protocolar do evento, o Libération titula: “Macron acusa Bolsonaro de mentir sobre questões climáticas e se posiciona contra a ratificação do acordo com o Mercosul”.
Em artigo veiculado em 23 de agosto, antes do início do G7, o jornal de esquerda-liberal revela: “A verdadeira face de Bolsonaro”.
O portal alemão Spiegel Online critica as empresas brasileiras de produção de carne bovina e soja e seu “negócio bilionário”.
O jornal em espanhol La República também divulga o envio dos militares para apagar o incêndio.
O italiano Corriere della Sera diz o que todos temiam, mas que se tornou realidade: “Incêndio na Amazônia. Alarme no G7 e ameaça ao Brasil”, referindo-se à iniciativa de Macron em frear a ratificação do contrato de livre comércio com o Mercosul.
O Le Parisien coloca o dedo na ferida: “Incêndio na Amazônia eletriza a cúpula do G7”. De fato, essa pauta chegou de surpresa para se juntar a problemas antigos, como a guerra de comércio entre a China e os EUA e mais uma nova ameaça do Irã com seu programa nuclear. O conservador Le Figaro titula artigo em tom realista: “A cúpula mais dividida de todos os tempos”.
O jornal alemão Die Süddeutsche Zeitung, com matriz na cidade de Munique, escolheu título ousado: “O poder de Bolsonaro sobre o fogo”, intuindo uma responsabilidade e uma intencionalidade do próprio governo na destruição do pulmão do mundo.
Decerto que, em tempos globalizados, é a primeira vez que o Brasil fica tão no centro do tabuleiro da política internacional e seu protagonismo, seu estar na berlinda, foi o pior possível.
Se as demonstrações de Fridays for Future, iniciadas pela jovem sueca Greta Thunberg em agosto de 2018, nos mostraram que a luta contra o aquecimento global já se encontra na prorrogação, a galopante dinâmica resultante do “dia do fogo” e dos avassaladores incêndios exibem o triunfo do medíocre: o presidente de um país de proporção continental e no zeitgeist do pós-globalizado acha que pode resolver tudo sozinho e interpreta como atitude “colonialista” qualquer ajuda de países com os quais ele pouco simpatiza.
Em seu último artigo, veiculado em sua coluna no jornal O Globo, a atriz e escritora Fernanda Young — que, no auge de sua lucidez artística, morreu com somente 49 anos — fez uma homenagem à cafonice: “O cafona fala alto e se orgulha de ser grosseiro e sem compostura. Acha que que pode tudo e esfrega sua tosquice na cara dos outros.” Essa frase exprime da maneira mais certeira possível o fim de semana do G7 e seu desdobramento midiático, fazendo do governo Bolsonaro, mais do que uma tragédia interna, um problema global.
A consternação é mundial, mas a perplexidade, local. Essa dobradinha foi delineada de forma brilhante por Silvia Leblon, a quem encontrei espontaneamente e entrevistei na última sexta-feira (23) em frente à embaixada brasileira em Berlim, durante a demonstração contra os incêndios e o des-governo.
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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.