Dia desses, parei pra tomar um café num pé-sujo em Botafogo. O botequim era minúsculo, mal iluminado, sem mesa ou cadeira, café em copo de vidro e açucareiro de metal. Adoçante, nem pensar. Devia ter umas quatro ou cinco pessoas, contando o dono, do lado de lado de lá do balcão. Peguei uma conversa no meio.
— Esse presidente quer botar ordem na Amazônia. Ele tá certo. Aquilo lá virou casa da mãe joana — disse um homem de seus 50 anos, que estava na porta, de costas pra rua.
— Casa da mãe joana, não! — rebateu o mais idoso ali, com um cigarro no canto da boca, voz rouca, provavelmente por excesso de tabaco. — A Amazônia é casa de índio, de macaco, de onça, de árvore, de pássaro, de peixe, de tudo, menos da mãe joana.
Fiz um gesto de positivo com o polegar pra ele. E, nisso, o que estava na porta reagiu.
— Ok! Mas se não botar ordem ali, não sobra índio, bicho, ou árvore.
Repeti também pra ele o mesmo gesto com o polegar. Foi a vez do que estava ao meu lado apagar o Marlboro no copo de café e retrucar.
— Tô de acordo que precisa de ordem. Mas é importante que os malucos lá de Brasília entendam que aquilo vale mais do que tudo no mundo. Mais que pré-sal, mina de ouro ou qualquer outra coisa.
Ambos tinham razão, falavam com propriedade e lucidez sem serem conservacionistas, biólogos ou estudiosos do tema. Eram pessoas dotadas de bom senso, matéria escassa em Brasília.
Mais uma vez, me dei conta de que a taxa de racionalidade do debate sobre a Amazônia — e do próprio país — cai à medida que se aproxima das instâncias de decisão do poder. Há muito mais lucidez e consistência nas discussões num botequim do que no Planalto. Aliás, sempre houve.
De fato, o que diferencia o Brasil do mundo é a imensidão de seus recursos naturais, em especial da Amazônia, disparado o nosso principal ativo. Se os Estados Unidos oferecem inovação, a Europa, educação e cultura, e a Ásia, sua incrível capacidade de organizar a produção, o Brasil contribui com gigantescas reservas naturais.
A Amazônia é a maior usina de produção de vida do planeta. Se fosse uma empresa, teria valor incalculável e suas ações estariam entre as mais concorridas nas Bolsas, não pelo que dela se pode extrair, mas pelo valor de bens, tangíveis e intangíveis, num mundo cada vez mais devastado. Que outra empresa fabrica ar, água, árvores, nuvens…? E os acionistas dessa empresa, de fato e de direito, somos nós todos, mas sem assento nas assembleias ou direito a voto.
Neste momento, creio, a Amazônia demanda uma visão mais econômica do que jurídica. Trata-se de questão matemática simples: inteira, a Amazônia vale muito mais do que retalhada.
Se o Brasil misturasse o bom senso — matéria abundante entre a população — ao conhecimento de técnicos e especialistas, num exercício de planejamento, certamente haveria menos devastação e alguma garantia de preservação no tempo.
Não é o caso de passar a cerca na Amazônia, mas de usá-la de forma racional, impedindo a exploração do que não é renovável. E ainda assim com regras e bom senso. A extração de minério, por exemplo, deveria levar em conta a relação entre “estragos e benefícios”. O valor de uma árvore na floresta é muito maior — e cada vez mais — do que tombada e vendida em toras.
Infelizmente, a mentalidade extrativista plantada em 1500 sobrevive firme e forte. Parte do princípio de que a natureza é um bem divino, oferecido a quem tiver recursos para explorá-la, sem levar em conta o esforço e o tempo gasto pelas forças do planeta para fazê-la emergir do solo. E desconsidera sua fragilidade diante de ferramentas de destruição em massa, disponíveis em qualquer loja de esquina.
Não se reproduz nada parecido com a Amazônia em laboratório. O que a natureza levou milhões de anos para formar não resiste a um coquetel de motosserra com mercúrio.
Já estava de saída do botequim quando ouvi do mais idoso a seguinte observação:
— O Brasil tá fatiando ouro em ferro-velho e vendendo pelo preço do quilo de cobre.
Levantei os dois polegares em sinal de positivo pra ele.
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Bruno Thys é jornalista. Trabalhou por quase vinte anos no Jornal do Brasil, onde foi de estagiário a editor-executivo. Foi um dos fundadores da revista Veja Rio. Participou da criação do Extra (RJ), jornal em que comandou a redação. Foi diretor da Infoglobo, empresa que edita os jornais e revistas do Grupo Globo e CEO do Sistema Globo de Rádio (CBN, Rádio Globo, etc). Tem prêmios relevantes, entre eles o Esso. É sócio da editora Máquina de Livros.