Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre um certo jornal

Numa primeira olhada era um jornal da contracultura, de linguagem mítica, que tinha como referência a América Latina. A partir dessa linguagem viveu a política sob novas perspectivas. Passou, por exemplo, a editar um caderno dedicado à questão negra, ‘Afro-Latino-América’, que se tornou um espaço de resistência do movimento negro. Tornou-se também uma embaixada de exilados latino-americanos, que chegavam atraídos por sua linguagem continental.

Era grande o seu prestígio entre artistas e intelectuais. Nomes como Milton Nascimento, Chico Buarque, MPB-4, Simone e o grupo Tarancón participaram de um show de apoio ao jornal, com a presença de 15 mil pessoas, transmitido por sistemas de som para outras 20 mil no congresso alternativo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), no segundo semestre de 1977, em São Paulo.

Marcou época, junto com outros jornais e revistas da imprensa alternativa, nos anos 1970. Foi criado por Marcos Faerman, que na época trabalhava no Jornal da Tarde. O primeiro número saiu em outubro de 1975.

Vez e voz

Em janeiro de 1978, recém-chegado de meu segundo exílio, depois de passar um ano na Europa a observar e participar da organização de partidos socialistas na Espanha e Portugal, entrei para o jornal.

‘Alguns boatos corriam nas mesas dos botequins de São Paulo. Entre um suspiro e outro se comentava: o pessoal do Versus recebeu dinheiro da social-democracia européia, há uma fita gravada que comprova tudo.’ [Ênio Bucchioni e Omar L. de Barros Filho, ‘O editorial dos editoriais’, São Paulo, Versus nº 28, janeiro de 1979, pp. 3-9]

Nascia o ano de 1978 e, com ele, uma indagação para a equipe. Um desafio: a hora era da discussão de perspectivas. E textos especiais foram publicados: Chico Pinto, José Álvaro Moisés, Fernando Henrique Cardoso. O tema da discussão eram os novos partidos. E pensamos o passado. Vimos que ao movimento popular de 1964 faltaram lideranças. E como colegas escreveram, era um movimento de base frágil, a receber inspiração de fora. Foi abandonado, sem esboço de reação de seus líderes. Entre as lideranças faltosas estava a figura de um ex-presidente.

Foi assim que o jornal correlacionou contracultura e discurso político. Passou a discutir conjuntura, a se identificar com correntes que pensavam a construção da democracia. E sonhou o socialismo: Almino Affonso, Edmundo Moniz, Plínio de Arruda Sampaio, a Tendência Socialista do MDB no Rio Grande do Sul tiveram voz e vez. Mas o jornal entendeu que a questão política era questão nacional, mas também global, onde entravam estudantes, mulheres, negros, índios e trabalhadores.

Jornalismo autônomo

O jornal se pautou, então, por uma ética do companheirismo que nascia da filosofia da práxis. E fez da autonomia crítica diante da autocracia do regime sua perspectiva de ação contra o egoísmo econômico e político. Proclamou a necessidade de uma nova ordem, na qual o sentido de comunidade fosse o fundamento da organização social.

Tal ética fez a denúncia do egoísmo da economia das multinacionais e dos governos latino-americanos que a elas serviam e levavam à expropriação de muitos em benefícios de poucos. Propôs uma economia solidária onde a alegria não fosse meramente fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condenou o egoísmo de classe, onde cada qual procurava enriquecer através da exploração do próximo, e as consequências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite.

Mas condenou também o egoísmo internacional do comércio e da força, que justificava a violência e a guerra sobre povos, nações e continentes. Assim, pregou a submissão das nações, fossem ricas ou pobres, à ideia do direito e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que levasse a um internacionalismo real entre as nacionalidades.

Apesar de ter uma ética que repousava sobre a filosofia da práxis, o jornal entendeu que, no Brasil, a alma da unidade espiritual é a religião, e que o fracionamento espiritual característico da segunda metade do século 20 no país traduzia fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E que qualquer processo cultural de unidade futura levaria a uma nova base de unidade e solidariedade econômica e social.

Nesse sentido, viu que havia na realidade brasileira e latino-americana um processo de desenvolvimento que se realizava de forma desigual na história do continente, mas que combinava mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias, considerou que o jornalismo autônomo e crítico frente aos poderes estava eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou participava do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento, ou se retraía e entrava em processo de caducidade ao afastar-se da vida real das comunidades.

Nova esquerda

Levantou, então, a bandeira da construção de um amplo e democrático Partido Socialista, que deveria partir, para isso, das ‘leis vigentes no país, que consideramos restritivas, não democráticas e antipopulares. Lutamos para que esse partido seja construído através de uma ampla e livre discussão interna, que integre todos os que se reclamam socialistas, organizando núcleos de base por locais de trabalho’ [Ênio Bucchioni e Omar L. de Barros Filho, idem, op. cit., p. 8].

Procurou somar contrários não antagônicos em direção ao sonho maior. E assim construiu uma maneira profética de fazer jornalismo: integrou três linguagens como forma de ação, a da contracultura, a reflexão sociológica e a discussão da instância diretamente política.

Tal presença contracultural e política na vida de milhares de brasileiros, principalmente daqueles envolvidos com a democratização do país, fez do jornal um bastião avançado nas lutas pelas liberdades democráticas.

‘Estivemos na linha de frente na campanha pela Anistia e pelas liberdades democráticas, reclamadas pela população brasileira. Fomos duramente atingidos pelos vários organismos repressivos do regime, inclusive com as prisões de alguns companheiros da redação, administração e colaboradores. Fomos sufocados financeiramente, e houve momentos em que a sobrevivência material diária ficou em mãos de nossos amigos e companheiros. No entanto, permanecemos e nos transformamos, nesse terceiro ano de vida, o mais agitado, sem dúvida. Ousamos nos entranhar na realidade social e política, e nos definimos. Acreditamos na profundidade de nossos ideais e estamos convencidos de rumar no mesmo sentido da história, sendo uma de suas parcelas vivas e atuantes.’ [Ênio Bucchioni e Omar L. de Barros Filho, ibidem, op. cit., pp.3-9.]

Sua produção jornalística remeteu ao pensamento da intelectualidade socialista da época. O debate de ideias traduziu força e formatou um dos pólos da nova esquerda: o ideal do convergir sem diluir-se em estruturas.

Dessa maneira…

Versus, versus
Li a linha
Geisel já vai tarde
Entrei na fileira
Cresceu a revolta
Marchei na coluna
Levantei fuzis de reconstrução
Versus, versus
É canto e dança!

…foi e ainda é fonte para a compreensão do pensamento socialista da época e da nova esquerda em particular.

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Jornalista e escritor