O Brasil vai mal e poderá ir ainda de mal a pior, comprometendo seu futuro. Não é preciso ir muito longe, nem fazer grandes pesquisas, para localizar a causa principal detonadora.
O Brasil perdeu seu rumo, vive um processo inédito de regressão social e política por ter um presidente inculto, incapaz, sem formação política e econômica, insuficiências agravadas por sua formação conservadora anacrônica, comprometida com grupos religiosos reacionários. Presidente que formou um governo de incapazes à sua imagem e semelhança.
De nada adianta não possuir os plenos poderes; sua influência se tornou deletéria, sua má presença no governo perverte e anima milhões de seguidores cegos pelo fanatismo. Claire Gatinois, correspondente do jornal francês Le Monde, comentou esta semana, ao deixar o Brasil, como um terço da população pode continuar a apoiar Bolsonaro, apesar dos seus péssimos resultados na presidência e de suas constantes provocações, envolvendo mesmo países estrangeiros.
De fato, é difícil entender – porque esse terço reúne, agora com ligeiras exceções da classe média, a população mais desfavorecida, mais pobre, com menos acesso à cultura, ao lazer, e que será ainda mais sacrificada com a nova lei da aposentadoria, os planos da nova política de saúde e de educação, dentro dos objetivos de tudo privatizar e reduzir o Estado ao mínimo.
Quem são os brasileiros que compõem esse terço, fiel aos delírios de Bolsonaro, interpretados pelos posseiros, plantadores, pecuaristas, garimpeiros, como incentivo para queimar a Amazônia? Na sua maioria são os crédulos evangélicos, hoje cerca de quarenta milhões de brasileiros, vindos do catolicismo decadente, distante do povo, depois de seus últimos papas (não o atual) terem eutanasiado com incenso e velas as vertentes sociais que pregavam um cristianismo vivo e pragmático.
O povo só quer pão? Os antigos reis romanos achavam que só pão não era suficiente, era preciso divertimento. E ofereciam um sanduíche de pão com circo. Entretanto, só divertimento parece não ser suficiente – é preciso também uma dose de ilusão. Ou, se quiserem, de espiritualidade, de fé, de esperança numa vida depois da morte.
Embora nestes milênios de civilização humana ninguém tenha provado uma sobrevida após a morte, sempre houve a esperança, que se transformou em crença e religião, em ídolos, e deu origem aos charlatães.
Resumindo, utilizando essa isca ou ilusão, os Estados Unidos invadiram o Brasil com uma versão popular de um cristianismo barato e facilitado, misturado com as teorias dos anos 1950, do pensamento positivo, como fazer amigos e influenciar pessoas, mais uma dose de cura divina. E, sem armas, mas com uma volumosa Bíblia, conquistaram a cabeça de um terço dos brasileiros. Uma invasão silenciosa, lenta e pacífica, mas conservadora e reacionária que, hoje, tornou o Brasil vassalo dos americanos.
Tem alguma dúvida? Os evangélicos, não os protestantes da cultura vinda da Reforma de Calvino ou de Lutero, mas o evangelismo dos pregadores das praças da Sé, que antes vendiam “barbatanas para colarinho” e depois passaram a vender o reino dos céus. Os seguidores desse cristianismo com versão reduzida e popular da Bíblia, tipo Seleções da Reader´s Digest, creem em Cristo, mas também têm fé em Trump e Bolsonaro.
Onde entra a “fórmula mágica”?
Não há nenhuma dúvida. Apesar da materialização do mundo moderno, os cortes orçamentários programados pelo governo bolsonariano nas artes, teatro, dança, espetáculos musicais, cinema, literatura, mais uma dose de censura conservadora na concessão de verbas e o empobrecimento do povo, elitização da cultura, vulgarização dos programas de televisão, filmes e peças de teatro religiosos, tudo isso levará os evangélicos a se equipararem, em número, com os católicos nestes próximos anos.
A profecia de Malraux se concretizará, pelo menos no Brasil: “o próximo século será religioso”. Talvez nem tanto na Europa, mas sem dúvida nos países menos desenvolvidos e com bolsões de miséria e ignorância, como o Brasil.
Mas voltemos agora ao desastre Bolsonaro e seus 30% de seguidores. Será uma desgraça para o Brasil se cumprir seu mandato de quatro anos, porém será ainda pior caso se reeleja ou venha outro igual ou pior.
Como prevenir e evitar a destruição do nosso Brasil, mesmo porque os Estados Unidos poderão fomentar movimentos que fragmentem o país em pedaços? A solução será a introdução, no Brasil, da “fórmula mágica” suíça! O que é isso?
Vamos lá. A Suíça, esse país equilibrado, rico e de grande respeito à liberdade, viveu também uma dramática fase religiosa. Em 1848, houve uma guerra civil religiosa, pois os cantões católicos não aceitavam fazer parte da confederação de maioria protestante. O fim da guerra veio com a derrota dos católicos, mas eles não foram obrigados a se converter e o país guardou na paz suas diferenças. Os cantões católicos mantiveram sua independência e sua especificidade dentro da união nacional. A unidade foi preservada e todos os cantões passaram a ter deputados representados em Berna, capital federal.
A “fórmula mágica” veio em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, da qual a Suíça não participou. O país precisava de união numa Europa em guerra, por isso criou um governo coletivo, no qual seriam representados os quatro maiores partidos, na proporção de 2+2+2+1, com um total de sete (7) membros, número ímpar que evitava empates.
A criação gradativa da Comunidade Europeia, que levou à Europa dos Doze em 1986, seguida do Tratado de Maastricht e à estrutura atual, em novembro de 1993, provocou na Suíça um movimento contrário de isolamento antieuropeu, com um reforço do Partido do Povo e o surgimento de um líder populista carismático de extrema-direita, também contrário aos imigrantes.
Seus eleitores, um terço do total dos eleitores suíços, tornaram esse partido conservador, racista, anti-imigrantes e reacionário o maior partido suíço. Assim, o Partido do Povo, que antes só possuía um representante no governo colegiado de sete membros, passou do quarto lugar ao primeiro, com direito a ter dois membros no Conselho Federal, enquanto o Partido Democrata Cristão perdeu eleitores, caiu para o quarto lugar e foi reduzido a um só representante.
A Suíça é, portanto, governada por um governo executivo de sete membros, no qual estão os socialistas com dois, os liberais com dois, os centristas com um e a extrema-direita populista com dois representantes. Ou seja, não há um líder único e todas as leis são fruto de acordos entre os membros do Conselho Federal. Ocorre haver um conselheiro federal mais popular, mas ele não detém mais poder que os outros seis. Pode ficar no Conselho muitos anos – seu partido decide quando deve sair -, mas o Parlamento vota a cada quatro anos se a confiança é renovada.
Geralmente todos têm a confiança renovada, porém o líder de extrema-direita do Partido do Povo, que não se ajustava bem ao governo coletivo, perdeu a confiança depois de quatro anos e foi substituído, por voto do Parlamento, por uma mulher do mesmo partido sem tendência autoritária. Na verdade, uma grande revelação que conquistou os outros partidos.
Em síntese, a Suíça tem um governo de consenso e seus membros, com mandato de quatro anos, são eleitos pelo Parlamento, numa sessão conjunta de deputados e senadores. Quando ocorre uma vaga no governo, os parlamentares de todos os partidos votam e aceitam ou rejeitam a eleição do candidato do outro partido. Assim, quando vai se renovar a representação do Partido Socialista, por exemplo, votam todos deputados e senadores liberais, democratas-cristãos, extrema-direita junto com os socialistas. Antes do dia da votação, o candidato é ouvido e sabatinado em sessão secreta pelos outros três partidos.
Resultado: o partido majoritário nas eleições legislativas não detém todo o poder, mas apenas 2/7. A cada ano, por rodízio, é eleito um presidente entre os sete membros, mas trata-se de uma função protocolar representativa. O presidente suíço não dispõe de nenhum poder a mais que seus outros seis colegas conselheiros federais. Assim, não se cria nenhum líder máximo. Anualmente, o Conselho Federal pode redistribuir os ministérios entre seus sete membros, de comum acordo.
Não há nenhum risco de se criar um Donald Trump, Boris Johnson ou Jair Bolsonaro, mesmo porque os sete conselheiros federais não são eleitos por votação direta, mas pela Câmara e Senado, depois de passarem por sabatinas diante dos partidos, na qual se confirma se são devidamente habilitados para o cargo.
Diante do caos vivido atualmente pelo Brasil, a adoção da “fórmula mágica” – como se costuma chamar a maneira de se eleger o executivo coletivo suíço – seria uma solução, bem melhor que o parlamentarismo. Mantém-se a votação direta para a eleição de deputados e senadores, porém os aspirantes a um dos sete cargos executivos precisam ter um curriculum vitae, um passado histórico de atuação na vida política ou administrativa do país, que os habilitem ao cargo. Isso assegura uma triagem automática que elimina os aventureiros e quem não tem formação necessária. Jamais um Bolsonaro passaria por esse crivo.
Além disso, cada um dos quatro grandes partidos representados no Conselho Federal cuida do controle dos membros dos outros partidos. Fica afastada a hipótese de arranjos, alianças espúrias, porque são partidos que se opõem no parlamento e jamais o membro da extrema-direita poderia imaginar uma falcatrua com um socialista.
As decisões são mais lentas porque um acordo sobre questões básicas exige muita discussão e concessão, porém não há praticamente nenhum lugar para armações pessoais e os partidos são valorizados naquilo que defendem e representam.
Quem sabe se poderia abrir espaço para a discussão política da adoção pelo Brasil da “fórmula mágica” e de um governo coletivo de conselheiros federais. Eu, pessoalmente, estarei à disposição para discussão desse tema, num projeto maior de se reformular a política brasileira.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.