Foi um acontecimento inédito na história da Organização das Nações Unidas, que provocou surpresa e espanto, ao se saber que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro tinha feito uma declaração ofendendo a ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet, agora dirigindo a Comissão de Direitos Humanos, e defendido a antiga ditadura chilena do general Augusto Pinochet.
Ainda hoje é esse o tema principal nos cafés e corredores da ONU. Entende-se. Mesmo nos momentos mais críticos entre contendas de países reunidos em Genebra, na ONU, nunca foram esquecidas as regras protocolares e jamais houve ofensas de ordem pessoal e muito menos envolvendo familiares.
O presidente Jair Bolsonaro infringiu as regras e tradições protocolares dentro da mais importante organização mundial, a ONU. Foi uma indecência, comentam alguns jornais, ao reportar a maneira como Bolsonaro se referiu ao pai da ex-presidente chilena, vítima do golpe de Pinochet, tendo morrido aos 50 anos na prisão, onde tinha sido torturado, reabrindo uma ferida.
O próprio atual presidente chileno – que não é socialista, mas de direita – fez um pronunciamento, em Santiago, logo trazido a Genebra, no qual afirmava não caucionar as declarações de Bolsonaro. O presidente Sebastian Piñera declarou textualmente: “Não participo, de forma alguma, da alusão feita pelo presidente Bolsonaro relacionada com uma ex-presidente do Chile e, em particular, sobre uma questão tão dolorosa como a morte de seu pai”.
Esse elogio a um ditador, responsável por tantos assassinatos e torturas, condenado na época por todos os países e pela própria ONU, poderá provocar reações por parte de alguns países, mesmo porque Bolsonaro poderá abrir, dentro de alguns dias, a Assembléia Mundial da ONU em Nova York.
Como se não bastasse o insulto, tripudiando sobre um assassinato ocorrido há mais de quarenta anos, Bolsonaro acrescentou, referindo-se a Michelle Bachelet, que deixou a presidência do Chile no ano passado: “Quando as pessoas não têm mais o que fazer, vão ocupar um cargo nos Direitos Humanos da ONU”. Acrescentou a ONU à sua ofensa e a seu desrespeito.
Por que tanta raiva e ódio de Bolsonaro contra Bachelet? Foram algumas observações por ela feitas referentes à situação atual no Brasil. “Nos últimos meses observamos”, disse ela, “um encolhimento do espaço cívico e democrático, ataques contra defensores dos direitos humanos, e restrições impostas ao trabalho da sociedade civil”. Prosseguiu: “Enquanto aumentou o número de pessoas mortas por policiais, principalmente negros e habitantes das favelas”.
Ela também lembrou da Amazônia e seus milhares de incêndios provocados voluntariamente, com o objetivo de dar lugar a plantações e pasto para gado.
Ao que tudo indica, a fim de compensar a perda de confiança dos últimos dias, o presidente Bolsonaro decidiu, como outros presidente populistas fizeram, usar a bandeira nacionalista. Depois da França, de Emmanuel Macron, agora é a chilena Bachelet – e, por tabela, a ONU, dirigida pelo português António Guterres. Essa manobra pode dar bons resultados no início, mas pode ser fatal em termos econômicos, internacionais e diplomáticos.
Bolsonaro será denunciado na ONU
A ofensa do presidente Bolsonaro à Alta Comissária dos Direitos Humanos da ONU provocou reações em todo mundo e, no Brasil, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Instituto Vladimir Herzog decidiram apresentar uma denúncia contra o presidente brasileiro por estar provocando um retrocesso à democracia no país e por fazer apologia à ditadura no Chile, na época de Augusto Pinochet.
Ao mesmo tempo, a OAB e o Instituto Vladimir Herzog realizarão, em Genebra, na própria sede da Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, um encontro paralelo destinado à imprensa internacional.
Não se trata de um pedido de processo, mas de uma denúncia que será acrescentada às irregularidades já mencionadas pela Alta Comissária chilena em seu relatório sobre irregularidades no Brasil. Como o Brasil é candidato à reeleição como membro da direção da Comissão de Direitos Humanos, essa denúncia irá reforçar o número de países contrários à sua escolha.
É provável que o Brasil receba, nessa escolha, só o apoio dos países com regimes totalitários. Mesmo porque, o Brasil já deu, recentemente, apoio a esses países, como a Arábia Saudita e o Paquistão, na questão dos direitos sexuais das mulheres, negadas por eles.
O Brasil – que, antes de Bolsonaro, votava sempre junto com os países democráticos europeus – também apoiou indiretamente o governo de extrema-direita das Filipinas, deixando de votar na ONU no pedido de abertura de investigações sobre execuções extrajudiciais pelo governo filipino.
O Brasil deu também apoio ao governo militar egípcio e ao Iraque no pedido de exclusão de um texto, da ONU, sobre o direito à saúde sexual e reprodutiva das mulheres. Nessa mesma linha, o Brasil apoiou a proposta paquistanesa de retirar a menção relativa à educação sexual numa resolução da ONU.
Mudou totalmente a posição do Brasil na ONU, pois deixou de apoiar a igualdade entre os sexos, rejeita tudo quanto se refere aos homossexuais, transexuais ou bissexuais e adotou uma posição conservadora sintetizada na promoção da família.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.