Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Arte em xeque

Trecho da HQ “Vingadores: A cruzada das crianças”. (Foto: Reprodução)

Nos últimos meses, escrevi dois artigos para o Observatório da Imprensa que abordam como o atual momento de obscurantismo pelo qual o Brasil atravessa tem trazido sérios riscos para o progresso do conhecimento científico (através do desmonte da universidade pública) e para a laicidade estatal (com a influência de ideias neopentecostais sobre as decisões do governo federal).

No entanto, além dessas duas questões mencionadas, há uma outra área que também está em xeque: a arte; seja através das próprias ações do Planalto, seja pelas mobilizações do exército bolsonarista espalhado Brasil afora. Nessa nova “caça às bruxas”, manifestações artísticas que de alguma forma se contraponham ao status quo governamental têm sofrido inúmeras retaliações.

Conforme a história nos mostra, governantes de caráter autoritário tendem a controlar com mão de ferro não apenas as questões políticas e econômicas, mas também exercem uma forte vigilância sobre as diferentes formas de expressão de sua população.

Nesse sentido, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) – órgão cujo objetivo é fomentar, regular e fiscalizar a indústria cinematográfica e videofonográfica nacional – tem sofrido constantes intervenções do governo federal. No mês de julho, Jair Bolsonaro anunciou a transferência da Ancine do Rio de Janeiro para Brasília, numa clara manobra para que o governo tenha mais influência sobre o órgão, como, por exemplo, na escolha dos filmes que serão incentivados.

Como o próprio Bolsonaro afirmou que o próximo presidente da Ancine deverá ter um “perfil evangélico”, não é difícil concluir quais tipos de filmes serão “incentivados”. Revisionismos históricos, mitologia cristã ou negação do conhecimento científico provavelmente serão as temáticas agraciadas. Não por acaso, a Ancine já fez a primeira vítima de sua censura. O longa-metragem Marighella – que narra a história do líder comunista Carlos Marighella – teve sua estreia nacional adiada pois, de acordo com declaração dos produtores, “não conseguiu cumprir a tempo todos os trâmites exigidos pela Ancine”.

Além da Ancine, o Centro de Artes Cênicas da Fundação Nacional das Artes (Funarte) também censurou sumariamente a realização da temporada de estreia da peça Res Publica 2023, do grupo teatral Motosserra Perfumada, prevista para outubro no Complexo Cultural da Funarte, em São Paulo, sob a justificativa de que a peça é “excessivamente ideológica” e não reúne “qualidade artística” para ocupar uma das salas do Complexo. Nessa mesma linha, o Itamaraty quis impedir a inclusão de um documentário sobre o cantor e compositor Chico Buarque no Festival Cine de Brasil 2019, a ser realizado também no próximo mês, no Uruguai. Desse modo, a censura do atual governo brasileiro extrapola as fronteiras nacionais.

Não obstante, a onda de obscurantismos também tem chegado ao âmbito municipal. No Rio de Janeiro, o prefeito Marcelo Crivella mandou recolher dos estandes da Bienal do Livro a edição da história em quadrinhos (HQ) Os Vingadores – A Cruzada das Crianças, que mostra uma cena em que dois super-heróis homens se beijam, argumentando que a mesma afrontaria o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); o que, conforme ressaltou o Ministro do STF Gilmar Mendes, configurou-se em um “verdadeiro ato de censura prévia, com o nítido objetivo de promover a patrulha do conteúdo de publicação artística”. Já em Porto Alegre, a Câmara de Vereadores impediu uma exposição de charges que representavam, entre outras personalidades políticas, o presidente Jair Bolsonaro, sob a alegação de “falta de respeito ao presidente da República, falta de limite e de bom senso”.

Fora da esfera estatal, o exército bolsonarista segue firme em sua cruzada moral contra os seus opositores, tanto nas redes sociais (com linchamentos virtuais) como em ações práticas de intimidação (impedindo as manifestações de vozes dissonantes). Em Paraty (RJ), uma palestra do jornalista Glenn Greenwald, editor do site The Intercept Brasil, foi interrompida porque manifestantes pró-Lava Jato propositalmente soltavam fogos de artifício e ouviam música alta. Durante uma apresentação em Teófilo Otoni (MG), o humorista Gustavo Mendes foi agredido verbalmente por fãs do presidente Jair Bolsonaro após fazer piadas de cunho político que citavam o “mito”. Segundo palavras do humorista: “Humor é sempre oposição. Esse é o papel do artista: incomodar os poderosos. Onde estavam essas pessoas quando eu debochava da Dilma? Do Temer?”

Muitos odeiam a arte, pois somente ela é capaz de demonstrar, em uma linguagem fácil e bastante acessível ao grande público, o quão mesquinho, contraditório e preconceituoso é o universo conservador. Basta recordarmos dos casos recentes da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti (que provocou a ira dos “manifestoches” que foram às ruas pedir pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff) ou das produções do Porta dos Fundos que revelam a incongruência entre os exemplos de amor ao próximo deixados por Jesus e os posicionamentos preconceituosos dos “cidadãos de bem” (indico assistir ao excelente vídeo Esquerda túnica). Para os moralistas que se consideram acima do bem e do mal, deve ser bastante constrangedor quando alguém consegue de maneira satírica revelar os aspectos obscuros de sua personalidade.

Se, na Idade Média, havia o Index, na Alemanha nazista, a Câmara de Cultura do Reich e, no Estado Novo, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), no Brasil contemporâneo os autointitulados “cidadãos de bem” combatem todas as formas de arte, amor, ciência e conhecimento. Enquanto o governo entrega o patrimônio nacional para os grandes capitalistas estrangeiros, sufoca manifestações artísticas e estrangula o ensino público, os principais grupos de comunicação do país ou apoiam incondicionalmente as ações presidenciais (Record e SBT principalmente) ou se limitam a criticar questões secundárias (como os vários discursos polêmicos de Bolsonaro e sua equipe). Não nos iludamos. Mídia, elite econômica e governo estão juntos em um único objetivo: aplicar a nefasta agenda neoliberal. Nem que para isso seja preciso passar por cima da arte, da laicidade estatal, da educação, da ciência e do que mais estiver à frente.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do PROEJA do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.