Estive pessoalmente, como jornalista, na apresentação da denúncia contra o presidente Bolsonaro na ONU, pela Ordem dos Advogados do Brasil, antecedida por uma videoconferência com o Instituto Vladimir Herzog, numa das salas próximas da Comissão de Direitos Humanos.
Pela primeira vez, entidades brasileiras se fizeram representar pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem de Advogados do Brasil, na pessoa do conselheiro Hélio Leitão, para denunciar o governo brasileiro, no caso a administração do presidente Jair Bolsonaro, por retrocesso político e desrespeito às instituições democráticas e pela apologia do antigo ditador do Chile, Augusto Pinochet. Pouco dias antes, a Alta Comissária da Comissão de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, e seu pai, assassinado durante a ditadura chilena, tinham sido ofendidos pelo presidente Bolsonaro.
Uma denúncia contra um país na Organização das Nações Unidas é um ato simbólico, não gera um processo e nem provoca uma sanção por parte dos outros 192 países membros. Entretanto, tem eco e funciona como uma espécie de nota negativa, que poderá ser lembrada ou invocada como argumento contrário a um acordo, uma ajuda ou empréstimo. Poderá igualmente reforçar um campanha de boicote caso coincida, como coincidiu, com alguma declaração ou crítica da ONU feita no mesmo teor da denúncia.
O Brasil, até agora, era um país de grande prestígio na ONU. Tanto que abre tradicionalmente a Assembleia Geral das Nações Unidas em homenagem ao papel desempenhado, logo depois da Segunda Guerra Mundial, pelo ministro brasileiro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, na criação da ONU. Foi Oswaldo Aranha quem presidiu a Primeira Assembléia Geral Especial das Nações Unidas, em 1947.
Logo depois da posse de Bolsonaro, portanto ainda este ano, em fevereiro, foi eleito por unanimidade um brasileiro, Renato Zerbini Ribeiro Leão, para dirigir a Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas. Outros brasileiros já dirigiram órgãos importantes da ONU, como Marcolino Gomes Candau, vinte anos na Organização Mundial da Saúde, e Sérgio Vieira de Melo, no Alto Comissariado para os Refugiados.
No próximo dia 24, se o presidente Bolsonaro estiver recuperado de sua recente operação ainda relacionada com o atentado sofrido no ano passado, caberá ao Brasil abrir a Assembleia Mundial da ONU. Existe uma certa expectativa quanto ao conteúdo do discurso de Bolsonaro: fará mais uma declaração evangélica, esquecendo haver na sala países muçulmanos? Será um discurso escrito pelo chanceler Ernesto Araújo, dentro das formalidades e protocolos, ou Bolsonaro decidirá fazer um improviso capaz de provocar reações internacionais e de encher de vergonha os brasileiros?
Enquanto aguardamos, vou transcrever aqui a entrevista feita com Hélio Leitão para a Rádio França Internacional. Leitão é conselheiro federal da OAB pelo Ceará e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil. Antes, porém, é bom assinalar a perda pelo Brasil de seu prestígio, mantido nestes últimos 72 anos não só na ONU como junto da comunidade internacional das nações, por declarações e decisões tomadas pelo governo Bolsonaro que atentam contra a democracia.
Por que a OAB veio a Genebra denunciar Bolsonaro?
A OAB tem status consultivo na Comissão de Direitos Humanos da ONU, uma entidade não governamental que antes nunca tinha usado esse espaço. Um espaço, um foro internacional importante de discussão, de debate, de reflexão e de denúncia. Hoje, participamos de um painel, de um evento paralelo, no jargão das Nações Unidas, no qual vamos discutir os retrocessos na agenda brasileira no que se refere às políticas de memória, verdade e justiça.
O que temos visto no Brasil é um esforço de tentar negar-se a existência da ditadura e de seus crimes. Busca-se um revisionismo e negacionismo histórico. Chega-se ao extremo de se negar fatos que já foram reconhecidos pelo próprio Estado brasileiro, mortes, torturas, assassinatos, banimentos, perseguições, alguns fatos que o próprio Estado brasileiro reconheceu, na tentativa de fazer as pazes com a própria história. E agora aponta uma política na contra-mão, no sentido contrário.
E o outro aspecto é a apologia da ditadura, vista na resposta do presidente Bolsonaro à Alta Comissária da ONU, Michelle Bachelet, enaltecendo a figura do ditador Pinochet.
Esse é um outro ponto de extrema relevância que nos preocupa na Ordem dos Advogados – o enaltecimento de uma ditadura e de seus crimes, o enaltecimento da figura de um ditador, hoje reconhecido como perpetrador de crimes contra a humanidade, o ditador Augusto Pinochet, e que parece servir de referência positiva ao nosso presidente. Com esses temas, queremos provocar a consciência cívica nacional e internacional.
Este é um primeiro encaminhamento, a primeira vez que estamos aqui para suscitar esse debate. Na sequência, com o impacto da nossa presença aqui, iremos avaliar. É uma primeira provocação. Nós estamos provocando as instâncias internacionais através do Conselho de Direitos Humanos para que avalie, analise, debata e faça um possível encaminhamento.
Amanhã, essa questão será tratada com o relator para a Verdade, Memória e Justiça da ONU, que é o professor Fabian Salvioli. Com isso, queremos levar a questão brasileira ao nível internacional, chamar a atenção da consciência cívica internacional, consciência democrática internacional pelo retrocesso por que passa o Brasil.
O presidente Bolsonaro não poderá se defender dizendo ser intromissão da ONU?
Isso não poderá ser considerado como uma intromissão da ONU, porque o Brasil é subscritor de tratados internacionais, é membro das Nações Unidas, é membro do Conselho de Direitos Humanos. O Brasil postula mesmo um novo mandato junto ao Conselho de Direitos Humanos, já postulou uma cadeira no Conselho de Segurança, de modo que o Brasil precisa ter maturidade para reconhecer que existem instâncias internacionais para tratar do assunto. A pretexto de soberania, o país não pode fechar os olhos a desvios democráticos.
Bolsonaro disse mesmo que o Brasil poderia sair da ONU…
Mas enquanto não sai e não assume esse sua feição autocrática e antidemocrática, o Brasil continua membro da ONU e certamente não fará ouvidos moucos ao que se diz aqui na ONU.
Hoje mesmo li que o filho de Bolsonaro, o chamado 02, fez uma declaração, diante das atuais dificuldades econômicas, de que a democracia atrapalha a economia, o que indiretamente é uma chamada ao golpe.
Eu vi essa declaração com muita estupefação e perplexidade. A cada dia temos uma nova declaração desse tipo e o Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, já deu uma resposta à altura, dizendo que o Brasil não precisa de uma família de ditadores.
Acha que existe mesmo o risco de um golpe no Brasil, como costuma dar a entender o presidente Bolsonaro nas suas afirmações espalhafatosas?
Espalhafatosas ou não, o Brasil já começa a ter suas instituições democráticas solapadas. O que se vê é que se golpeia a democracia por dentro, com o desmonte dos conselhos, que são instrumentos de controle social, de participação social. Já se cogitou aplicar inúmeras iniciativas que felizmente não foram levadas a cabo, mas que visam sufocar os espaços democráticos, os espaços de participação popular.
A propósito, a Alta Comissária e presidente da Comissão de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, já denunciou isso, dizendo que o Brasil tem tido estreitamentos nos seus espaços cívicos e democráticos, seja com a truculência de um golpe, seja golpeando a democracia por dentro. Diz-se que a democracia traz consigo o germe de sua própria destruição e isso parece, no Brasil, mais verdadeiro do que nunca, pois todo dia há tentativas de solapar todas as instituições democráticas e todo o avanço com a possibilidade de participação popular. A democracia já sofre esses riscos.
Uma questão final relaciona-se ao fato do Brasil estar se transformando num país religioso com o aumento dos evangélicos, nada a ver com o protestantismo da Reforma. Os evangélicos são uma ameaça à democracia com seu reacionarismo no que se refere ao sexo, homossexualidade? Uma previsão diz que, no Brasil, os evangélicos serão tantos quantos os católicos no ano 2050, com sua cultura norte-americana destruindo nossas lendas e figuras brasileiras consideradas pagãs…
Qualquer confusão, qualquer simbiose entre Estado e grupos religiosos, seja qual for, que possa ferir a laicidade do Estado precisa ser repudiada, ser rechaçada pelas instituições democráticas. Eu não posso impor meus valores religiosos a quem quer que seja. Eu não posso pautar políticas públicas por valores religiosos. Isso vale para evangélicos ou para qualquer outra confissão religiosa. O que nos preocupa muito é essa simbiose que faz com que tenhamos o fim de políticas públicas de resgate e promoção social de alguns segmentos perseguidos e sacrificados, como o segmento LGBT, mais alvos históricos de perseguição e preconceitos. Não se podem solapar os direitos dessas pessoas por motivação religiosa. Não se pode ter política pública e nem ação de Estado direcionada por valores religiosos. O Estado só deve garantir a liberdade de credo, nada mais além disso.
Fica a impressão de que Bolsonaro governa para os evangélicos…
Certamente. Ouvi uma declaração do presidente que é de arrepiar os cabelos, quando ele falava que precisamos de um membro evangélico no Supremo Tribunal Federal, como se religião que se professa fosse um critério para indicar alguém para o STF. Isso é inaceitável e impensável.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.