O Tribunal de Contas da União (TCU) perdeu uma boa chance de ficar calado quando determinou à Agência Nacional do Cinema (Ancine) que, de agora em diante, só os filmes que demonstrarem chance de sucesso comercial poderão ser feitos com participação do dinheiro público.
A informação consta de matéria publicada na Folha de S.Paulo (sexta-feira, 22/10). Segundo a reportagem, a decisão havia sido tomada dois dias antes, como resultado de auditoria feita na Ancine sobre os mecanismos de apoio ao cinema brasileiro através das leis de renúncia fiscal, em particular a chamada Lei do Audiovisual. A conclusão de um ministro do TCU é que os filmes que são completados mas ficam sem distribuição ‘não trazem benefício para a sociedade’.
Se conhecesse o mercado, o ministro se daria conta de que na prática o que ele fez foi determinar que a partir de agora só as majors americanas (Columbia, Fox, Warner, Buena Vista/Disney) estão autorizadas a produzir filmes no Brasil. Entenderia também que ele está se colocando na contramão de uma grande batalha que se trava nos bastidores do meio cinematográfico, justamente para que os filmes sem vinculação com as grandes distribuidoras estrangeiras tenham maior acesso ao mercado, cujo gargalo neste momento está na distribuição e na falta de salas para exibir produtos brasileiros de porte médio (como são, aliás, a maioria dos produtos cinematográficos americanos, italianos ou chineses).
É no incentivo à criação de novas salas e do desenvolvimento de distribuidoras brasileiras de porte médio que se deve focar agora. O blockbuster (filme de grande mercado) é, em qualquer lugar do mundo, a exceção que viabiliza o resto da industria. No Brasil, corre o risco de se transformar na única opção de produção.
Benefícios fiscais
O quadro é mais ou menos o seguinte: nos últimos três anos, os produtores voltados para o cinema de massa uniram-se à Globofilmes e às majors para viabilizar alguns filmes dirigidos ao grande público. Os produtores entram com o projeto; a Globofilmes dá a esses projetos traços mais comerciais e participa com mídia maciça; e as majors co-produzem o filme com base nos incentivos do artigo 3o da Lei do Audiovisual, que permite a aplicação na co-produção nacional de parte dos lucros que seriam remetidos pela exploração do cinema estrangeiro no Brasil.
O expediente é hábil e legítimo. Filmes produzidos dessa maneira, como Carandiru, Lisbela e o prisioneiro, Cazuza – o tempo não pára, Os normais, passaram dos 3 milhões de espectadores, o que é um resultado extraordinário, que não poderia ter sido alcançado de outra forma. Outros filmes que seguiram o mesmo esquema, como A dona da história ou Redentor, não chegaram a fazer grande sucesso, mas a estratégia resolveu um dos pólos da produção cinematográfica no Brasil – o do filme de massa.
Faltam outros dois, os chamados filmes de porte médio e as produções mais autorais, de difícil assimilação pelo grande público, mas de grande valor cultural para a formação de novas platéias. É justamente sobre essas duas vertentes que a atividade, agora, procura focar.
Se o contribuinte brasileiro fosse obrigado a eleger onde colocar o dinheiro público – se nas majors americanas ou nos produtores brasileiros de pequeno e médio porte – dificilmente optaria pelo primeiro, como o ministro do TCU está propondo.
Isso não quer dizer que as majors não devam ter direito ao incentivo do artigo 3o e com ele fortalecer o mercado, o que é consensual dentro do meio. Mas este mesmo meio estuda agora limitações a essas aplicações e o fortalecimento do artigo 1o da Lei do Audiovisual – que garante benefícios fiscais a qualquer empresa – justamente para que a indústria brasileira de cinema não se torne monolítica e siga exclusivamente os padrões que (de um ponto de vista estritamente mercadológico) a Globofilmes e as grandes distribuidoras internacionais julguem adequados para os projetos em que se envolvam.
Caixa de supermercado
Na verdade, diversificar essa produção e fugir à subserviência única a esse modelo é uma questão estratégica para a cinematografia brasileira: disso depende sua pluralização e sua autonomia criativa. Disso depende também a diversificação do mercado.
A Globofilmes vai lançar 12 filmes em 2005. Prevê-se que outros 35 sejam lançados, não necessariamente com características técnicas mais precárias, mas com formas diferenciadas de olhar para o mercado e para a arte cinematográfica.
Essa diversificação é não apenas essencial para a vida do cinema como para a criação de mercados focais, o que é uma praxe bem-sucedida em toda parte do mundo – especialmente nos EUA, onde as cinematografias experimentais, por exemplo, vivem em permanente estado de efervescência desde os tempos de Michael Snow e Hollys Frampton, justamente porque são capazes de estabelecer nichos auto-sustentáveis há mais de 40 anos. Sem Brakhage, para ficar num único nome, hoje a forma de se olhar para o cinema seria bem empobrecida.
O apoio do Estado à produção cinematográfica e audiovisual, por outro lado, é praxe em crescimento no mundo inteiro. O Observatório da Comunicação, de Portugal, mostrou, no último dia 15 (‘O sistema de apoio direto à produção cinematográfica e audiovisual’), que um apoio direto da Europa à sua cinematografia está presente hoje em todos os países do continente e, em 2002, estava avaliado em 1,3 bilhões de euros. São mais de 600 os programas de apoio direto promovidos por 169 organismos – nacionais, regionais, intergovernamentais ou supranacionais.
Segundo o Observatório da Comunicação, um estudo do Observatório Europeu do Audiovisual em colaboração com o Banco Europeu do Investimento mostrou que esses apoios podem se inscrever diretamente no orçamento do Estado (Espanha, Itália, Rússia e Turquia), na aplicação de loterias (Finlândia e Reino Unido), nas contribuições voluntárias das TVs (Alemanha e Suécia) e em fortes isenções fiscais (Reino Unido, Paises Baixos, Irlanda e Luxemburgo).
No Brasil, se vier a vigorar o dirigismo comercial que o TCU acaba de propor, todas essas formas de apoio que ainda estão por ser conseguidas darão lugar a um ambiente cinematográfico onde somente as majors e a Globofilmes poderão estabelecer os padrões (à sua revelia, aliás).
Se tivesse acontecido antes, Glauber Rocha e Nelson Pereira teriam que escolher outras profissões. Se um TCU assim existisse na Europa, Jean-Luc Godard seria caixa de supermercado e o cinema francês não seria mais que um arremedo pobre de Hollywood.