Política e religião, em separado, já despertam a paixão de milhões de brasileiros. Quando se acrescenta a capacidade disseminadora da imprensa, a combinação pode colocar em risco as estruturas da sociedade. O programa Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (25/08) discutiu as ligações entre meios de comunicação, igrejas e a esfera política no Brasil. Desta vez, o ponto de partida deste tema, já tratado pelo programa em inúmeras edições, foi uma investigação do Ministério Público de São Paulo que resultou em uma denúncia acolhida pela 9ª Vara Criminal de São Paulo. | Link no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=fgklY-amLLk |
Macedo e outros nove integrantes da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) são
acusados de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.
Segundo o MP, a seita envia o dinheiro arrecadado com as doações dos fiéis
para paraísos fiscais e depois aplica os recursos em empresas privadas no Brasil
e em canais de televisão, com a Record. A denúncia foi amplamente divulgada
pelos meios de comunicação e logo se instalou uma guerra midiática entre a redes
Record e Globo. Acuada, a Iurd tratou de criticar o acordo entre o governo
brasileiro e a Santa Sé, firmado em 25/11/08 e que confere status jurídico para
a Igreja Católica no Brasil. A concordata prevê o ensino religioso optativo,
isenção fiscal a manutenção de patrimônios da Igreja com recursos do Estado,
entre outros pontos polêmicos.
No estúdio do Rio de Janeiro, a convidada foi a jornalista Elvira Lobato,
repórter especial da Folha de S.Paulo, com mais de 35 anos de
experiência. Lobato é especialista na área de Comunicação de Radiodifusão. Em
São Paulo, o Observatório recebeu Roseli Fischmann, doutora em Filosofia
e História pela Universidade de São Paulo (USP), que estuda questões étnicas,
raciais e religiosas, e Roberto Livianu, promotor de Justiça criminal de São
Paulo, que está no MP desde 1992.
O médico e o monstro
Antes do debate ao vivo, na coluna ‘A Mídia na Semana’, Dines comentou fatos
de destaque dos últimos dias: o fato de mulheres que acusam o conceituado médico
Roger Abdelmassih, especialista em reprodução assistida, de abuso sexual não
terem procurado a imprensa; o pouco destaque dos títulos conquistados por
esportes como o vôlei – que acaba de ganhar mais um Grand Prix – na mídia; e a
notícia de que o cantor Michael Jackson morreu de overdose de medicamentos. ‘As
legiões de fãs em todo o mundo não se importam com tantas falsificações, mas
deveriam lembrar-se que dançarinos como Fred Astaire e Gene Kelly, cantores como
Frank Sinatra e Ella Fitzgerald, os Beatles e Rolling Stones, foram maravilhosos
artistas, alguns ainda vivos e se exibindo sem recorrer a operações, injeções e
transformismos’, disse.
No editorial que precede o debate ao vivo, Dines comentou o acordo firmado
entre o Brasil e a Santa Sé e disse que é perigoso e anticonstitucional porque
‘o Estado brasileiro é secular, laico e a mídia não pode ser cúmplice deste
pacto de silêncio’. O jornalista considera que ‘os mundos político e midiático
estão preocupados com o temor de uma guerra que vai além da competição comercial
entre as redes de TV’. Para Dines, a manutenção do laicismo é uma questão
política. ‘Diz respeito ao Estado democrático e isonômico, pertence à esfera
Legislativa. Embora a questão dos símbolos religiosos em prédios públicos agora
levantada tenha que ser resolvida na esfera Jurídica. Resta perguntar como
ficarão os abusos nas concessões de rádio e TV a grupos religiosos. Serão
corrigidos pela Câmara Federal ou vetados pelo Ministério das Comunicações?’,
questionou.
A reportagem exibida pelo programa mostrou a opinião de Carlos Eduardo Lins
da Silva, ombudsman da Folha de S.Paulo. O jornalista destacou que
emissoras de rádio e televisão são monopólio do Estado brasileiro, que é laico.
Segundo ele, é ‘complicado’ ceder uma concessão de radiodifusão a uma
denominação religiosa. Além de explorar o veículo para o ‘proselitismo
religioso’, há o risco de a emissora virar fonte de receita monetária e ser
usada com fins político-partidários. Carlos Eduardo argumentou que o jornalismo
deve ser laico e defender os interesses de todos, independentemente do credo.
‘Os assuntos religiosos devem ser tratados com muita cautela, moderação e
conhecimento. É o que falta, ao meu ver, muitas vezes ao jornalismo’, criticou,
complementando que a confluência entre meios de comunicação, religião e política
é perigosa para o futuro da sociedade.
Processos em avalanche
No início do debate ao vivo, Dines pediu para Elvira Lobato comentar a
avalanche de processos que sofreu por conta da reportagem especial ‘Universal
chega aos 30 anos com império empresarial’. O levantamento, que sintetizava anos
de pesquisas sobre as empresas de rádio e TV da Iurd, foi publicado pela
Folha de S.Paulo em dezembro de 2007. ‘Eu fui surpreendida em janeiro do
ano seguinte com as ações. Foram chegando uma, dez, quinze, trinta. Uma coisa
que a gente nunca tinha visto. Todas de lugares remotos, não tinha nenhuma de
capital. Há ações, geralmente, em locais onde a Folha não circula’,
enfatizou.
Lobato contou que as ações seguiam um modelo. Muitas tinham a mesma redação e
frases iguais, o que mostra que a enxurrada de ações foi orquestrada pela Iurd.
A jornalista acredita que o objetivo era intimidar e calar a imprensa. ‘Impõe um
custo financeiro altíssimo para o jornal e um custo emocional altíssimo para
mim. Eu fiquei praticamente um ano fora desta cobertura porque tinha que estar
presente nas ações e, depois, até pelo desdobramento. Eu fiquei muito abalada.
Ninguém que sofre mais de cem ações simultâneas reage com frieza a isto’, disse.
Roberto Livianu chamou a atenção para o fato de que a maioria das pessoas não
sabe que os canais de rádio e TV são concessões públicas, os cidadãos têm a
percepção de que são bens privados de determinados grupos. ‘Não se tem clareza
de que se tratada de serviço público, objeto de concessão, e que como todo
serviço público é necessário que cumpra certas finalidades, objetivos, voltados
para o interesse de todos’, explicou. O promotor questionou se a programação de
emissoras que fazem proselitismo religioso causa constrangimento a adeptos de
outras confissões ou a ateus. Para Livianu, o debate em torno do tema ainda não
está ‘amadurecido’. Não há a consciência de que este é um tema inerente à
democracia.
Concordata escondida
A pouca cobertura do tratado entre a Santa Sé e o governo brasileiro foi
discutida no Observatório. Roseli Fischmann lamentou que o tema só
tivesse voltado a ser debatido como conseqüência dos ataques contra a Iurd.
Fischmann disse que é preciso refletir não só sobre os canais que pertencem a
denominações religiosas, mas também a respeito da ‘influência profunda’ de
determinados grupos religiosos em outros canais. ‘Muitas vezes é explícito, mas
em outras situações não é. E o que não é explícito é igualmente importante.
Aquele pacto de silêncio (sobre o acordo) não aconteceu à toa’, advertiu.
É necessário que haja uma grande discussão para criar parâmetros. ‘Eu não vejo
outro caminho que não seja a própria democracia, com todas as suas
vicissitudes’, avaliou.
Outra denominação que esteve envolvida em escândalos foi a Renascer em
Cristo. Em 2008, nos Estados Unidos, seus líderes foram acusados de evasão de
divisas. Dines perguntou a Elvira Lobato como ficou a questão das concessões de
radiodifusão ao grupo religioso após a série de denúncias. Lobato explicou que a
Renascer disputou várias licitações para canais de radiodifusão nos anos 90
através de empresas que estavam em nomes de bispos, pastores e parentes ligados
à cúpula da seita. O ministério das Comunicações chegou a anunciar a suspensão
de tramitação de pedidos de concessão de empresas ligadas a dirigentes da
Renascer, mas os processos não foram paralisados. Para cassar ou negar uma
concessão é necessária grande maioria na Câmara e no Senado, é um processo
complexo.
Lei de responsabilidade religiosa
Um telespectador perguntou a Livianu se poderia ser criada uma ‘lei de
responsabilidade religiosa’ nos moldes da Lei de Responsabilidade Fiscal. O
promotor explicou que há instrumentos na Lei que promovem a reparação
necessária. ‘Quem, através de condutas, produz prejuízo a quem quer que seja,
responde nos termos da Lei. O Código de Processo Civil tem os instrumentos para
que as pessoas que se sintam lesadas por atos concretos tenham os mecanismos
para obter os ressarcimentos necessários. Eu acho que o que precisamos é de uma
lei que regule a questão comunicação eletrônica de massa’, argumentou. Para o
promotor, a lei atual é anacrônica. Outro ponto criticado foi a paralisação do
Conselho de Comunicação Social do Senado Federal, que está inativo desde 2007.
Elvira Lobato levantou a questão da responsabilização por possíveis excessos
cometidos por canais de radiodifusão. As concessões não são registradas em nome
dos grupos religiosos, mas sim em nome de pessoas físicas, fundações ou
empresas, que têm acionistas. Neste caso, como exigir uma reparação se é difícil
estabelecer a ligação formal? ‘A Rede Record sempre disse que ela não pertence à
Igreja Universal, que pertence a pessoas físicas’, comentou.
O promotor explicou que o artigo 222 da Constituição Federal, que regula os
meios de comunicação, não fixa restrição de titularidade de canais de televisão
por igrejas. De acordo com a Carta Magna, podem ser titulares de emissoras
pessoas naturais ou pessoas jurídicas constituídas há mais de dez anos. ‘Na
verdade, em tese, não feriria a Lei que uma determinada religião postulasse uma
concessão. Eu diria que isto não é recomendável, mas não fere a Constituição’.
Deve-se fiscalizar o conteúdo dos canais para ver se o interesse público está
sendo respeitado.
A partir da observação dos comentários do chat do programa, Dines
destacou que os telespectadores ‘não estão muito interessados no laicismo’,
preferem a briga entre a Globo e a Record. Elvira Lobato disse que a preocupa
que as denúncias do ministério público acabem obscurecidas pela questão da
disputa comercial entre as emissoras. ‘Na minha avaliação, o que tem que ser
olhado é o que o Ministério Público apurou. Não desviar o foco para não mascarar
a essência da questão’, disse.
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A concordata e a questão das concessões
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 517,
exibido em 25/08/2009
Há exatos nove meses, em 25 de novembro passado, este Observatório
revelou um pacto da grande imprensa com o governo para esconder um tratado – ou
concordata – entre o Estado brasileiro e a Santa Sé. Lembramos na ocasião que
esta era uma atitude perigosa e anticonstitucional, porque o Estado brasileiro é
secular, laico e a mídia não pode ser cúmplice deste pacto de silêncio.
A mídia fingiu que não era com ela. Hoje os mundos político e midiático estão
preocupados com o temor de uma guerra que vai além da competição comercial entre
as redes de TV.
O pacto de silêncio rompeu-se a partir do momento em que um juiz de São Paulo
acolheu a denúncia do Ministério Público contra dez altos dirigentes da Igreja
Universal, inclusive seu expoente maior, o bispo Edir Macedo, acusado de evasão
fiscal e lavagem de dinheiro.
A grande imprensa com a Globo à frente passou a atacar o complexo
religioso-político-empresarial do bispo Macedo enquanto evangélicos e outras
denominações luteranas voltaram-se contra a concordata com o Vaticano.
Fiéis não têm culpa
A questão tem desdobramentos que não podem ser esquecidos. Os oito milhões de
fiéis da Igreja Universal não têm culpa pelas supostas trapalhadas dos seus
dirigentes. Outro dado que não pode ser esquecido é que as emissoras de rádio e
TV compradas com os dízimos dos evangélicos usam concessões públicas. Em outras
palavras: o Estado brasileiro avalizou estas operações.
Mas se o Estado brasileiro é laico e não pode estar atrelado a qualquer credo
religioso fica evidente que também são ilegítimas as concessões de rádio e TV à
Igreja Católica.
A manutenção estrita do laicismo é uma questão política, diz respeito ao
Estado democrático e isonômico, pertence à esfera Legislativa. Embora a questão
dos símbolos religiosos em prédios públicos agora levantada tenha que ser
resolvida na esfera Jurídica.
Resta perguntar como ficarão os abusos nas concessões de rádio e TV a grupos
religiosos. Serão corrigidos pela Câmara Federal ou vetados pelo ninistério das
Comunicações?