Publicado originalmente no blog Jornalismo nas Américas
Um relatório da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) sobre os obstáculos à distribuição do jornalismo impresso em noventa países destacou o México como um dos “campeões na obstrução da distribuição de jornais e revistas”.
O informe Jornais que nunca chegam. Investigação sobre os obstáculos à distribuição da imprensa, lançado no dia 23 de setembro e disponível em inglês e francês no site da organização, também destaca ameaças à distribuição de veículos impressos na Argentina, Brasil, Nicarágua e Venezuela.
Em pesquisa realizada com jornalistas e distribuidores de meios impressos em noventa países ao redor do mundo – incluindo os latino-americanos Chile, Costa Rica, Equador, Peru e República Dominicana, além dos citados acima -, 41% dos respondentes disseram que a censura ao jornalismo impresso acontece nos pontos de venda e 22% disseram que acontece enquanto os jornais estão sendo armazenados ou distribuídos.
Os temas na cobertura que mais motivam a censura no momento da distribuição, segundo os respondentes da pesquisa, são política (21%), corrupção (18%) e questões de segurança e defesa (17%). Para 68%, o governo ou o Estado são os principais responsáveis por obstruções na cadeia de distribuição de meios impressos; 45% apontaram o crime organizado. O México foi um dos países com mais ocorrências dessa resposta, afirmou o relatório.
O país foi o único latino-americano, entre os cinco destacados no relatório, como um dos “censores em série” da distribuição de jornais e revistas. Esses países “não intervêm apenas em um ponto da cadeia de distribuição, mas em múltiplos estágios, de modo a garantir controle completo sobre o que pode e não pode ser lido”, diz o informe.
Segundo o documento, “no México, o país mais mortal para a mídia na América Latina, o ciclo vicioso de violência e impunidade ocorre em vários níveis da cadeia de distribuição. Jornaleiros são assassinados, administradores de bancas são ameaçados, edições de jornais são confiscadas arbitrariamente e o conteúdo é reescrito na gráfica. Conluio entre crime organizado e autoridades (políticas e administrativas) representa uma grave ameaça para todas as pessoas envolvidas na produção e na distribuição de notícias e informações, e muitas publicações acabam decidindo fechar”.
O relatório afirma que os voceadores, como são chamados os jornaleiros no país, são “parte da cultura mexicana”. Eles “anunciam as notícias do dia para centenas de milhares de pessoas, frequentemente nos cantos mais remotos do México, e desempenham um papel essencial ao informar incontáveis comunidades”.
Trata-se, porém, de uma “atividade arriscada em um dos países mais perigosos no mundo para a mídia”. O relatório cita o caso de Meréndez “Mere” Hernández Tiul, que foi assassinado enquanto anunciava as notícias do dia em Francisco Rueda, no estado mexicano de Tabasco, em 24 de janeiro de 2018. Ele estava anunciando a notícia da prisão de suspeitos de roubos de motocicletas na cidade quando foi alvo de dois tiros disparados por um homem que era parente de um dos detidos mencionados na notícia e que também estaria implicado nos roubos, segundo o relatório. Seu assassinato, “como quase todos os assassinatos de jornalistas no México, continua impune”, acrescentou.
Restrição de papel-jornal contra imprensa independente
Na Venezuela e na Nicarágua, os obstáculos à chegada dos jornais impressos às mãos dos leitores passam pelos governos dos dois países, que têm restringido o acesso de meios opositores ao papel-jornal e a outros materiais necessários para a impressão das publicações, diz o relatório.
O informe cita o caso do jornal venezuelano Panorama, que publicou sua última edição impressa no último 14 de maio, após 104 anos circulando, e fala em “extinção em massa” da mídia impressa no país desde 2013. De acordo com o Instituto Prensa e Sociedade Venezuela (IPYS), 67 jornais desapareceram no país nos últimos seis anos, 35 deles apenas em 2018, e já não há mais jornais em circulação em dez dos catorze estados venezuelanos, diz o relatório da RSF.
Isso devido às dificuldades para obter papel-jornal, já que sua distribuição é controlada por um órgão do governo venezuelano que tem o “monopólio de fato da importação, do transporte e da venda deste precioso material bruto”, segundo o documento. Um jornalista venezuelano que falou à organização sob anonimato disse que o órgão “aloca recursos de maneira arbitrária – quando quer, como quer e para quem quer -, tornando-se assim um censor direto de publicações impressas”.
O governo da Nicarágua, segundo o relatório, parece ter aprendido do governo venezuelano e tem usado métodos similares para “silenciar a mídia impressa independente” do país. O informe faz referência ao aumento dos casos de censura e perseguição à mídia desde abril de 2018, quando começaram os protestos populares contra o governo do presidente Daniel Ortega, e acrescenta que, além disso, “tornou-se virtualmente impossível que publicações privadas obtenham papel-jornal, tinta e até borracha”, materiais necessários à impressão de jornais.
O informe aponta que está em vigor desde setembro de 2018 uma proibição na importação destes materiais, imposta pela Direção Geral da Alfândega (DGA), um órgão do governo. “A proibição é equivalente a uma sentença de morte lenta para a mídia impressa nicaraguense”, diz o documento, acrescentando que jornais como El Nuevo Diario, La Prensa e Diario Hoy já diminuíram o número de páginas em cada edição e disseram à organização que podem parar de circular “em questão de semanas”.
Já na Argentina, é o monopólio privado que ameaça as publicações impressas no país, afirma o relatório da RSF. O “colosso multimídia” Clarín “reina supremo” no setor e, junto com o jornal La Nación, é o dono da única empresa de papel-jornal do país desde 1977. Jornais que não pertencem a estes dois grupos de mídia “constantemente reclamam de problemas de distribuição, aumento arbitrário dos preços de papel-jornal bem além da inflação e abusos no sistema de cota ao qual eles estão sujeitos”, diz o informe, acrescentando que o resultado tem sido uma “carnificina”, com várias publicações impressas encerradas, entre elas o The Buenos Aires Herald, fechado após 140 anos em circulação, e as revistas El Gráfico e Los Inrockuptibles.
O relatório ressalta que, em janeiro de 2019, o governo do presidente Mauricio Macri promulgou uma lei que revogou a regulamentação do papel-jornal que havia sido implementada pelos governos de Néstor e Cristina Kirchner, deixando o Clarín “livre para determinar os preços de papel-jornal como desejar” e desobrigado de garantir o fornecimento de papel-jornal na Argentina.
Sobre o Brasil, o informe da RSF lembra uma “apreensão sem precedentes” de exemplares de um jornal ocorrida em 2018, a poucos dias do segundo turno da eleição presidencial que levou o atual mandatário, Jair Bolsonaro, ao poder.
Na ocasião, o juiz eleitoral Sandro de Araújo Lontra determinou que a polícia apreendesse 30 mil exemplares do jornal Brasil de Fato em Macaé, no Rio de Janeiro. O juiz baseou sua ordem na percepção de que a edição continha “artigos difamatórios sobre o candidato Jair Bolsonaro” e acusou o jornal de “abuso de autoridade”, relatou o informe, acrescentando que Bolsonaro “é conhecido por sua relação conflituosa com a imprensa”.
No relatório, a RSF faz recomendações a governos para que “respeitem suas obrigações internacionais relacionadas à disseminação de uma imprensa livre, diversa e independente”, “garantam prevenção efetiva de qualquer obstrução na disseminação de uma imprensa livre, diversa e independente” e “reforcem a prevenção por meio da punição rápida e efetiva de violações da disseminação da imprensa”.
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Carolina de Assis é jornalista e pesquisadora, mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda).