Publicado originalmente no site Balaio do Kotscho
Por que, de um dia para o outro, os chilenos foram às ruas em gigantescas manifestações para derrubar o governo?
O que levou aquelas multidões a enfrentar os tanques e as baionetas da repressão, sem medo de ser feliz?
Para quem acompanhou a histórica rebelião popular do povo chileno pela imprensa brasileira, essas perguntas não têm respostas.
Ficamos sabendo apenas que 100 mil, depois 500 mil, mais adiante, 1 milhão de pessoas ocuparam ruas, praças e avenidas de Santiago, gritando que “o Chile acordou!”.
Inventaram por aqui o “jornalismo drone”, que mostra imagens do alto e não vai perguntar às pessoas o que as faz arriscar a vida para melhorar de vida.
É como se a história do nosso tempo só pudesse ser contada por números e gráficos.
Se as estatísticas oficiais mostravam um país em franco desenvolvimento, com crescimento do PIB e das exportações, um modelo para a América Latina, como é que os chilenos ousaram dizer que era tudo uma grande mentira e que cada vez mais gente estava passando fome nesse paraíso do neoliberalismo?
Perguntem a Sebastián Piñera, o atordoado presidente chileno, que, diante da revolta popular, dissolveu seu ministério, suspendeu o estado de emergência, desandou a anunciar programas sociais e a pedir desculpas à população.
Piñera foi traído pelo “jornalismo drone”, que ignora a alma e as necessidades do povo, exatamente como acontece aqui no Brasil.
Por isso, nossos sábios analistas vira e mexe são “surpreendidos” por manifestações contra o governo, sem entender como começaram e onde querem chegar.
Diante de levantes desencadeados sem lideranças visíveis, a única reação do capitão-presidente brasileiro foi acusar o “terrorismo” pelo que estava acontecendo no Chile.
Se não são “comunistas”, só podem ser “terroristas” as centenas de milhares de jovens, velhos, homens, mulheres e crianças que, dia a dia, foram ocupando todos os espaços públicos do Chile.
Lá da China, Bolsonaro mandou avisar que, se isso acontecer no Brasil, as tropas estarão de prontidão para impedir as manifestações.
É tudo o que ele quer para botar as Forças Armadas nas ruas contra o povo e oficializar a ditadura que vem gestando desde o seu primeiro dia de governo.
No mundo fardado de quem manda (os militares) e quem obedece (os civis), é a única coisa que ele entende e tem a oferecer como programa de governo.
Com o apoio dos generais de pijama, a Rede Bolsonarista de Televisão e o que sobrou da falida imprensa de papel, os templos neopentecostais e as milícias digitais comandadas pelos filhos, os rentistas do mercado e os marombados da Barra da Tijuca, Bolsonaro gosta de posar de valente Napoleão dos trópicos, mas deve estar morrendo de medo do povo.
Qualquer desatenção pode ser a gota d’água, como ensina a canção do Chico.
Sem aviso prévio, o desalento da população pode entornar o copo e desaguar num mar de gente nas ruas, a exemplo do que estamos vendo na nossa vizinhança.
O medo que eles têm de Lula é o brasileiro também despertar do sono profundo e dar um basta a tanta indignidade.
Chega uma hora em que o “jornalismo drone” já não vai conseguir camuflar a crescente indignação, ainda silenciosa, mas prestes a explodir.
Um milhão de pessoas nas ruas do Chile correspondem, proporcionalmente, a 10 milhões de pessoas ocupando as ruas do Brasil.
Quando isso acontecer, faltarão tropas para o capitão-presidente e seus generais de fancaria, que não terão a grandeza de Piñera para pedir desculpas à população.
E poderá ser tarde demais.
Vida que segue.
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Ricardo Kotscho é jornalista.