Todos os anos, um fenômeno bizarro, promovido pela mídia e por indivíduos de pouca empatia, marcado pela baixaria e pela falta de ética e de compaixão, acontece nos dias do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Trata-se da espetacularização e até humorização do sofrimento de milhares de pessoas que, na maioria das vezes, por infelizes injustiças do acaso, talvez até dotadas de um contexto de discriminação e exclusão social, são impedidas de fazer o exame por causa de poucos minutos ou mesmo segundos de atraso após o fechamento dos portões dos locais de prova.
Já é lugar-comum que a maioria dos grandes portais da imprensa e também sites locais e regionais de notícias transformem em “show de entretenimento” o desespero de quem encontrou as portas do futuro literalmente fechadas diante de si. Fazem algo parecido com as conhecidas “videocassetadas”: transformam a dor física ou emocional alheia em motivo de diversão, de riso, de pensamentos desalmados do tipo “eu acho é bom!” ou “bem feito, quem manda ser irresponsável?”.
Acabaram sendo destaque também algumas pessoas que foram ao cúmulo de chegar e sentar perto dos portões dos locais de prova, com direito a levar latas de cerveja para consumo próprio, só para assistir à miséria alheia e caçoar do desespero de quem se atrasou. A mídia abordou isso de maneira aparentemente “imparcial”, mas ficou evidente que, entre essas pessoas carentes de empatia e os noticiários, subentendeu-se um clima de “tamo junto”, já que compartilhavam o prazer sadista de converter o sofrimento de outrem em “atração cultural”.
Por outro lado, o que se viu entre a opinião pública foi uma prevalência dos que gostaram de ver o que viram nas tais notícias – e até mesmo curtiram e acharam “criativos” os “engraçadinhos” que foram assistir à dor dos atrasados. Muitas pessoas desaprovaram com veemência e defenderam que a postura da imprensa e dos “espectadores ao vivo” foi de fato absurda e antiética, mas, atualmente, pelo que se pode deduzir, ainda são minoria.
Esse “show” de horrores – nos múltiplos sentidos da expressão -, incluindo também sua receptividade positiva entre tantas pessoas, nos mostra que paira na sociedade uma tradição de alarmante desvalorização da empatia, uma moral divorciada da ética. A maioria das pessoas não se compadece do sofrimento da outra ou do outro – pelo contrário, ri da dor dela(e) e, muitas vezes, a(o) julga como “culpada(o)” pela própria desgraça.
Essa “moral imoral” de comicizar a dor alheia e julgar quem sofre reflete a crença de muita gente de que a sociedade brasileira é, ou deveria ser, estritamente meritocrática. Ou seja, pune ou deveria punir com severidade os “perdedores”, mesmo que o motivo da derrota destes seja uma injustiça advinda das desigualdades sociais e das discriminações que afligem a maioria da população do país.
Afinal, segundo dizem os ideólogos da meritocracia capitalista, as quedas do indivíduo são culpa dele mesmo, por “não ter se esforçado”, por não ter feito um rigoroso planejamento de sua carreira escolar-acadêmica e empregatícia, por ser “preguiçoso”, por “não ser disciplinado”, entre outros pretextos que ignoram completamente o contexto social no qual a vida de cada pessoa está inserida.
Nessa lógica, mesmo o confeiteiro que, no Enem 2016, chegou atrasado porque o patrão não o havia liberado do trabalho a tempo é o “culpado” por seu próprio infortúnio, portanto é um “perdedor” e “deve” ser escrachado pelo julgamento público. E, também, aquelas pessoas mais pobres que, não contando com o carro dos pais, moram longe do local da prova e tiveram que pegar dois ou três ônibus para tentar chegar a tempo, ou cujo patrão não deixou que saíssem do expediente, são penalizadas por esse julgamento, o que escancara o elitismo odiento dos julgadores.
Outro tentáculo dessa mesma “moral imoral” é a cultura do machismo. É aquela que consiste em culpar as mulheres, com os mais absurdos pretextos, pelas violências que elas sofrem – por exemplo, culpando vítimas de estupro porque “não se davam ao respeito” ou “usavam roupas curtas demais” ou “estavam bêbadas” ou “não estavam acompanhadas de seus maridos ou namorados” etc.
De forma ainda mais severa e criminosa, o machismo amplifica contra mulheres vítimas das mais diversas violências a lógica do “júri opressor” imposto contra quem encontrou os portões fechados no vestibular. Julga, condena, ostraciza, maltrata, humilha.
Essa moral julgadora e estigmatizadora precisa ser enfrentada. Precisamos deixar claro que essa falta de empatia e de ética anda de mãos dadas com ideologias opressoras, como a meritocracia, o machismo e o conservadorismo egoísta, se não é diretamente derivada delas. Da mesma maneira, comentemos, em cada notícia que trata como “show de entretenimento” o sofrimento de quem perdeu a prova, como a imprensa viola a cidadania e os direitos humanos quando espetaculariza a desgraça alheia. Essa moral sem ética de expor ao julgamento sumário, condenatório e linchador pessoas que são alvos de opressões e infelicidades cruéis não deve mais ser tolerada caso queiramos uma sociedade mais humana e justa.
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Robson Fernando de Souza é escritor e blogueiro defensor da neurodiversidade e do veganismo político.