Os ataques cibernéticos são cada vez mais sofisticados. Não existe uma legislação clara que proteja o cibernauta dos censores. A reportagem é de Verónica Calderón, publicada na edição de sábado (29/8) do diário espanho El País. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Até um mês atrás, poucos haviam escutado falar de Cyxymu. O nome se refere a Sujumi, a capital de Abjazia, uma das regiões autônomas da Geórgia e é também o nickname utilizado por Georgy, um professor de economia de 34 anos, que vive em Tbilisi, a capital georgiana. Seu blog é escrito em georgiano e em russo, e a maioria das mensagens se referem a receitas de cozinha típicas da região, fotografias antigas de suas cidades ou vídeos de danças tradicionais. Mas também fala de algo mais: aborda temas de política interior da região, nos quais mostra uma postural crítica frente aos governos russo e georgiano da mesma forma. E é aí onde começaram seus problemas.
Cyxymu foi marcado como o objetivo dos ataques que colapsaram o popular serviço de micromensagens Twitter e a rede social Facebook no dia 6 de agosto passado, apenas alguns dias antes de que a guerra entre Rússia e Georgia completasse um ano. ‘Nunca imaginei que o objetivo seria eu’, explica ele por telefone de Tbilisi. ‘Os ataques ao meu site foram constantes, mas a sofisticação desse último [ataque] me convenceu de que foi realizado por uma organização maior, como o governo russo’.
Foram precisamente esses ataques os que levaram seu nome às manchetes, mas não era a primeira vez que sua mensagem havia sido atacada. Seu blog no Livejournal, um dos sites de internet mais populares da Rússia, já havia recebido ataques. Quando abriu uma conta na página WordPress, o recebimento foi similar. Os ciberataques foram suficientemente efetivos para obrigar os dois sites a fechar sua conta.
Driblar controles
O mecanismo é simples. Os atacantes bombardeiam os sites-alvo com mensagens indesejadas (spam) em nome do usuário-vítima, até causar o colapso da página de internet inteira.
Após ter recebido vários desses ataques e ter sido obrigado a migrar de um site para outro, Cyxymu se converteu no primeiro ‘refugiado digital’, segundo a descrição do especialista no uso da web para fins políticos, Evgeny Morozov. ‘Os ciberataques se tornaram uma ferramenta poderosa para evitar que uma mensagem seja difundida sem causar uma acusação direta de censura’, explica. ‘A Rede é, em teoria, o lugar idôneo para exercer a liberdade de expressão, mas se alguém é silenciado é muito difícil defendê-lo’.
A repercussão do caso de Cyxymu iniciou um debate na Rede. ‘Cada vez mais é mais fácil atacar um blog ou um site concretamente e obrigá-los a mudar de endereço uma e outra vez’, reconhece Rick Klau, diretor do blogger.com, o site de diários virtuais do Google. ‘Enquanto as técnicas de censura se tornam cada vez mais sofisticadas, é claro que a liberdade de expressão na internet está em risco’, explica. ‘Os ataques que Cyxymu recebeu refletem o poder dos hackers, que são capazes de colapsar sites inteiros para silenciar um único usuário’, acrescenta. ‘Os governos e as companhias devem começar a se dar conta das ameaças reais que milhões de usuários podem estar sujeitos’.
O avanço dos controles de censura na Rede fez com blogueiros e autoridades brinquem de gato e rato no ciberespaço. A internet teve um papel preponderante nos protestos gerados depois das eleições presidenciais do Irã em junho: desde a organização dos comícios até a divulgação da repressão das autoridades.
As primeiras imagens da jovem Neda, abatida a tiros nas ruas de Teerã durante um dos atos, se difundiram pela internet. E foi precisamente nessa ocasião que as liberdades da Rede ficaram expostas. A troca de ataques entres os dissidentes e os censores iranianos causaram o fechamento de vários sites da internet: desde as redes sociais até as páginas oficiais do regime de Mahmoud Ahmadineyad.
Os participantes dos protestos podiam entrar na internet por meio de servidores proxy: um acesso que muda o identificador (IP) do computador por um diferente para escapar dos controles. Alguns blogueiros estrangeiros prestaram seus próprios serviços para ajudar os usuários iranianos. ‘Nunca estive no Irã, mas isso se tornou um tema muito importante para mim. Eu queria ajudar’, lembra Austin Heap, informático norte-americano de 27 anos. Sua participação à distância nos protestos iranianos lhe deixou uma marca. Agora, três meses depois, criou Haystack, um programa projetado especialmente para escapar dos controles desenvolvidos no Teerã. ‘Os mecanismos de censura são diferentes em cada pais, um programa específico é mais efetivo para acessar a rede’, comenta Heap. Haystack está inspirado no Freegate, um programa que tem o mesmo fim que o de Austin Heap, que foi desenvolvido para escapar do ‘Grande Firewall chinês’, talvez o censor mais efetivo da internet.
Liberdade restrita
Um usuário iraniano opinou na página oficial do Freegate dizendo que el programa ‘salvou vidas no Irã’, porque ‘nos deu a única forma pela qual podíamos nos comunicar’. O programa Freegate foi desenvolvido por informáticos chineses para escapar da censura sobre sites do movimento neobudista Falun Gong. O software é o suficientemente rápido para se enviar como um documento anexo em um e-mail.
O Freegate muda o endereço IP do usuário a cada segundo, o que o torna praticamente impossível de ser achado por um censor. A particularidade do serviço causou que, em um primeiro momento, ele fosse identificado como um vírus, o que fez com que a ONG que o desenvolve (o Consórcio pela Liberdade na Internet) se reunisse com os fabricantes de antivírus para evitar que fosse considerado um programa daninho. Seu êxito foi tal que, apesar de o serviço ter sido idealizado para ser utilizado por usuários chineses, sua popularidade chegou a internautas de Myanmar e do Irã. O programa, antes disponível somente em inglês e mandarim, agora conta também com uma versão em farsi.
Mesmo assim, a China, o país com o maior número de usuários de internet do mundo (cerca de 300 milhões), conta também com um dos mais sofisticados controles de informação da Rede. Só no último ano, o governo chinês recrutou 10 mil informáticos para trabalhar como controladores de conteúdo na internet. A censura é tão efetiva que, só durante o último mês de fevereiro, Pequim havia conseguido barrar a entrada de cerca de 1.900 sites e de 250 blogs.
Os controles também se referem a conteúdos mais concretos. Se escrevermos ‘Tian an men’ na versão chinesa do buscador Google aparecerão imagens da praça dignas de um postal e não se encontrará nenhuma palavra sobre algum protesto como o de 1989. O resultado é parecido ao tentarmos buscar informação sobre o Dalai Lama ou a organização religiosa Falun Gong. Inclusive, se a busca for feita fora da China. O recém lançado site de buscas Bing, da Microsoft, causou polêmica quando aplicou o mesmo critério censor na versão norte-americana da ferramenta. Isso até que a queixa de várias ONG, que corrigiram o que chamaram de ‘um infeliz erro involuntário’.
Mas o controle do governo chinês não parou por aí. O governo de Pequim pediu aos fabricantes de computadores que os equipamentos que são vendidos em seu território contem com o programa Green Dam (represa verde), que, segundo as autoridades chinesas, servirá para proteger o usuário de ‘conteúdos pornográficos e informação prejudicial’. A ONG Internet Society assegurou que o programa ‘facilita a espionagem das atividades cibernéticas’ e converte o governo no principal vigilante das atividades do usuário. A União Europeia disse que o programa estava claramente projetado para restringir a liberdade de expressão e que o governo dos EUA advertiu que o software poderia violar as obrigações da China na Organização Mundial do Comércio (OMC). O único fabricante que aceitou a iniciativa, a empresa japonesa Sony, anunciou em julho que instalaria o programa em todos os equipamentos que se vendessem na China para ‘cumprir com os requisitos do governo’.
Decisão errada
Apesar de contar com uma das comunidades de cibernautas mais dinâmicas do mundo (existem pelo menos 70 milhões de blogs criados por usuários chineses), o uso da ferramenta para difundir mensagens críticas ao governo é muito limitada. Só 5% dos cibernautas chineses utilizam software para escapar dos censores. ‘O uso da internet não aproximou a China da democracia’, comenta a pesquisadora da Universidade de Hong Kong, Rebeca McKinnon. ‘Se o governo permite a existência efêmera de alguns site dissidente é só para acalmar alguma tensão sem permitir que ocorra uma mudança real’, acrescenta.
Mesmo que provenham de hackers anônimos ou de controles governamentais, os ataques demonstraram a fragilidade da internet. ‘Ainda não existem mecanismos sólidos para proteger a liberdade de expressão na Rede’, assegura Morozov. ‘A experiência de Cyxymu no Twitter deu-lhe uma notoriedade tal que sua conta não foi eliminada para evitar o escárnio público, mas muitos outros blogueiros atravessaram situações semelhantes sem que nada acontecesse’, reflete.
A maioria das redes sociais na internet, assim como os sites de blogs, Twitter ou Facebook, não se pronunciaram claramente sobre a proteção de seus usuários. Sua reação diante desse tipo de ataques foi, na maioria dos casos, pragmática: apagar o perfil ‘problemático’, especialmente, porque resolver esses problemas consome muitos recursos. ‘Essa é uma decisão errônea. São justamente esses usuários os que mais necessitam dessa proteção. Os blogueiros que utilizam a Rede para divulgar sua mensagem são, em muitas ocasiões, os que vivem em regimes com maior opressão’, explica Morozov.
***
Os usuários asiáticos, os mais assediados
A Ásia concentra 42,2% dos cibernautas do mundo e também é lidar em censura dos conteúdos da web. Segundo um estudo do Consórcio pela Liberdade na Internet (GIFC, em inglês), os países com maior controle sobre a informação disponível para seus cidadãos são China, Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Síria.
O relatório afirma que, no entanto, os acontecimentos políticos tiveram um efeito enorme nos hábitos dos usuários. Durante as revoltas democráticas em Burma em 2007, o acesso à Rede por meio de programas anticensura triplicou, segundo o GIFC.
O fenômeno se repetiu em acontecimentos como os protestos no Tibete em março deste ano: os internautas dessa região utilizaram os programas desenvolvidos para escapar dos censores até quatro vezes mais. ‘Nossos programas são um dos poucos vínculos que os tibetanos ainda têm com o exterior, explica o diretor do GIFC, Shiyu Zhou.
O poder da internet e de suas redes sociais, no entanto, não se cristalizou em uma mudança real nas sociedades com maior repressão, refuta o pesquisador Evgeny Morozov. ‘O acesso à internet é muito lento e caro nesses países. Além disso, qualquer pessoa que utilizar essa ferramenta provavelmente fala inglês, tem contatos no exterior e viaja mais do que o resto da população. Em outras palavras, são casos muito isolados’, indica em seu blog.
O caso de um dos regimes mais fechados do mundo, a Coreia do Norte, ilustra seu argumento. Só 4% dos norte-coreanos têm acesso à internet e o fazem por meio da rede interna do governo, que é ‘lenta e antiquada’, segundo a pesquisadora da Universidade de Harvard, Rebecca MacKinnon.
Não parece ser o caso do líder norte-coreano, Kim Jong-il, que, em 2007, declarou que era ‘um especialista em internet’.
******
Repórter do El País