Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bolsonaro, ano 2: o poder das milícias que ameaça a República

Publicado originalmente no site Balaio do Kotscho

Por que os mandantes do assassinato de Marielle Franco ainda estão livres, leves e soltos, quase dois anos após esse atentado de terrorismo político-miliciano?

Para encontrar a resposta a essa singela pergunta, recomendo a leitura do artigo “Em defesa da República – Desafio da sociedade em 2020 é iniciar concertação contra o milicianismo”, de Oscar Vilhena Vieira, publicado dia 4 na Folha.

Vilhena vai direto ao ponto: “Para o milicianismo não há cidadãos ou direitos (…) Os que não se curvam à extorsão nada recebem. Os que se insubordinam são eliminados, como ocorreu com Marielle Franco”.

Como profetizava o final do filme Tropa de Elite 2, ao sobrevoar Brasília, o poder paralelo instaurado pelo milicianismo no Rio de Janeiro, com suas ramificações na política, já estava se preparando para ocupar o vazio deixado pelo Estado.

“A ascensão de lideranças políticas que orbitam em torno do mundo das milícias, ou que partilham do seu ethos, estabelece novos desafios às nossas instituições políticas (…) A questão que se coloca neste momento é como as instituições têm lidado com a dimensão mais corrosiva deste governo, contígua ao populismo reacionário, que é o milicianismo?”.

Do Rio para Brasília, e de lá para o resto do país, dia a dia a nova ordem da desordem se impõe, cria suas próprias leis, abre caminho a bala e fogo, desafiando o Judiciário e o Congresso, que já não conseguem acionar o sistema de freios e contrapesos.

Professor da FGV Direito SP e autor do livro A batalha dos poderes, Vilhena mostra a ofensiva das tropas milicianas em todas as áreas da vida nacional e faz uma grave advertência: “A ampliação das invasões das terras indígenas, o aumento das queimadas na Amazônia, o crescimento das mortes pela polícia, os ataques à liberdade de expressão, a total negligência com o sistema educacional e o combate frontal à cultura não decorreram de mudanças propriamente institucionais. Ao contrário, foram consequência de uma ação paraestatal sistemática promovida pela dimensão miliciana do atual governo que provoca a erosão, captura e desgaste das instituições”.

Na mesma edição da Folha, encontramos na matéria “Bolsonaro anistia grilagem, freia novas áreas indígenas e estaciona reforma agrária” (página A4) a medida provisória 910, assinada discretamente por Bolsonaro no último dia 10 de dezembro.

Se o Congresso aprovar mais esta aberração, no prazo de 120 dias, abre-se o caminho para a privatização de terras públicas invadidas ilegalmente, acabando na prática com a demarcação de terras indígenas prevista na Constituição de 1988.

São favas contadas: a bancada ruralista, com quase 300 deputados no total de 513, é claro que vai aprovar a toque de caixa essa velha reivindicação dos “empreendedores rurais”, que adotam na Amazônia, no cerrado e no Pantanal o mesmo modus operandi das milícias nos subúrbios cariocas: ocupar as áreas na marra e no grito, se preciso a bala, e subjugar as comunidades.

Sem verbas previstas em 2020 para os novos projetos de assentamento da reforma agrária, os pequenos produtores sem terra vão virar mão de obra barata do agronegócio e das mineradoras que já se preparam para explorar o subsolo.

A bancada ruralista já ocupa todos os principais cargos do Ministério da Agricultura, inclusive o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), de onde foi defenestrado o general João Carlos Jesus Corrêa, que resistia aos ataques do milicianismo rural em marcha.

Em 2019, a demarcação de terras indígenas e quilombolas foi simplesmente abandonada, como mostra a reportagem de Fabiano Maisonnave, que fornece amplo material para o próximo artigo de Oscar Vilhena Vieira.

“O grande desafio da sociedade brasileira em 2020 é dar início a uma ampla concertação político-institucional contra o milicianismo e em favor da República”, propõe Vilhena no final do seu texto.

Temo apenas que seja tarde demais.

A civilização já perdeu para a barbárie, agora oficializada.

Vida que segue.

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Ricardo Kotscho é jornalista.