Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tetê Catalão foi juntar-se a João Cabral

Há profissionais da palavra que trabalham o sulco das linhas com o calo da imaginação. Era o caso de nosso saudoso jornalista e escritor Tetê Catalão, ou TT (como ele mesmo escrevia), que partiu para prados menos espinhosos, aos 71 anos, na madrugada de 2 de janeiro passado. A soma de uma hepatite com insuficiência renal nos privou da genialidade deste jornalista e poeta que recebeu o nome de pia de Vanderlei dos Santos Catalão.

Generoso, criativo, entusiasta, executor de ideias e sonhos. Tetê inspirava por onde passava. Eu o conheci bons anos atrás, na época em que era correspondente, em Brasília, do portal Comunique-se, e ele ainda estava no Correio Braziliense.

Em 2008, trabalhamos no Encontro Nacional de Pontos de Cultura (TEIA). Ele fez vários textos para o evento e, em meio a eles, falou sobre nossa amada Brasília com seu toque peculiar: “Brasília é, nesse sentido, a encruzilhada das contradições nacionais, o próprio Exu Monumental. Está, exatamente, no entroncamento das asas (desejo) e do eixo (base e fio terra) do Plano de Lúcio Costa. (…). É assim que a cidade (no Planalto Central) se faz o próprio ponto das contradições nacionais. Algo que se instala no coletivo e no indivíduo”.

Depois, em 2012, o convidei a participar de um livro que estava escrevendo (Cartas ao poeta dormindo), mandando uma carta a João Cabral de Melo Neto. Ele topou sem pestanejar. E mandou mais um daqueles textos geniais, no bom estilo Saramago.

Em outubro de 2019, chegamos aos vinte anos da morte do eterno escritor pernambucano. Meses depois, Tetê foi juntar-se a ele. Foi falar o texto pessoalmente.. Duas figuras ímpares que faziam das palavras o que queriam, alcançando todos os matizes, todas as vertentes sinestésicas que fazem textos alçarem voo como balas ou flores que atingirão o alvo certo.

Compartilho a carta dele a João Cabral, atual e mordaz:

“Salve poeta,

somos ossos de um brasil descarnado – curto – infame – inflamável – um brasil que
teima em ser ostra quando nasceu para astro – que acha ser grande se entrar no jogo dos
“grandes” que se aproximam do colapso – por esmero degredo ou sina arrasta-se a vida
que revida em sopro assombro e chacina – sua obra nos cobra: o jeito de fazer da aridez
uns pingos de luz precisa – corte na palavra feito carne viva exposta mais filha bastarda
das perguntas que resumo de resposta – sua obra ainda nos dobra para ver o chão das
pedras clamando por sementes – salve poeta salve-nos, de tamanha prosa sem ritmo,
tamanho verso sem rima – salve poeta, salve-nos da vereda severina – um galo degola
outro sem tecer a manhã cristalina um galo engole outro galo para manter o sangue de
pouca tinta – somos severinos sem ver a severa dura lida sem ver o quanto nos dopam,
consumimos parcos dóceis sob a narcose cretina – teve um que quebrou o cerco, sem
um dedo com dados onde juntou fome ferina, subiu a rampa presidente, fez ópera
nordestina, arriscou outros brasis para o desespero letrado, rompeu lacres, quebrou
fontes, fez florir caatingas, assim chamado lula, chamou gula de menina, tentou ensinar
outro galo cantar que não desafina;

‘e se somos severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte
severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada
antes dos vinte de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte
severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)’ – como é bela a luta
dessa gente para escapar do destino – como está diferente a luta (as bandeiras não
conseguem acompanhar tanta força) para escapar da mentira manipulada sobre nossa
miséria: “vocês nasceram assim e morrerão nisso” – tem muita gente desmontando essa
farsa e reinventando a vida

‘um galo sozinho não tece uma manhã’ desesperadamente rogamos ao sol da
solidariedade que ‘outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol
de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre
todos os galos’ – a conspiração da mediocridade é grande – a coinspiração para
revoltas libertárias soa como bravata de poetas românticos: as almas estão secas e o
discurso oco por se apropriar da retórica revolucionária e não refletir comprometimento
de vida – burocracia cargos cangas coleiras e poder de governo mandam no sonho e
perdem a senha do futuro – mas não é choro nem ranger de crentes: ainda brota valor de
luta nesse desolado de ideias e companheirismo real – vê-se pela natureza humana
degradada tanto maior o tamanho da natureza original devastada;

os rios estão machucados sob maus tratos áridos em visgos de vícios fartos, são retos
toscos e ralos da água que nos ensina, foram rios, foram raros, agora escoam aos ralos
da arrogância mesquinha – dos teus rios ‘retirantes em que só o suor não secou; e
entra essa gente triste, a mais triste que já baixou, a gente que a usina, depois de
mastigar, largou’ – seguimos penitentes em romaria tecno onde paixão descaminha
sem GPS – procuramos como seu rumo indicou ‘os rios que eu encontro vão seguindo

comigo, rios são de água pouca, em que a água sempre está por um fio, rios todos
com nome e que abraço como a amigos, uns com nome de gente, outros com nome de
bicho, uns com nome de santo, muitos só com apelido, mas todos como a gente que
por aqui tenho visto: a gente cuja vida se interrompe quando os rios’.

revejo e reverbero seu verbo sempre no limbo da sua língua estilete hábil em revidar
palavras estopim – sua poesia permanece e acende – embora escasso o conteúdo, caço
sensatez na deformada rinha pela perda da linguagem – idolatram a ditadura do ‘curto’
estiloso feito fast food literário por medo da beleza barroca em que vertigem mostra a
exuberância da língua – até citam você como exemplo, esquecendo que o seu ‘curto e
conciso’ era depuração de quem mergulhou na robusta estrutura – esqueceram do seu
‘catar feijão’ longe de ser dogma era saber de quem muito triscou a terra para
emprenhar grãos: ‘Catar feijão se limita com escrever: Jogam-se os grãos na água do
alguidar e as palavras na folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo,
toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo; pois catar esse
feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco. Ora, nesse catar feijão entra
um risco, o de que entre os grãos pesados entre um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a
leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a com risco’.

de resto, o que sobra é a caricatura do moderninho em esquema mal sustentado em seu
esqueleto; poetares curtos de ideias idem; enxurradas de cotidianos mal alinhavados
pela substância do vivido na pele – pipocam pop inflado de celebrações a 140 toques
por postagem – vale tudo quando não há valor em nada; porém sua herança haikai
sertaneja continua única – o sertão ensina preservar para tempos hostis – mandrakes de
mandacaru babam: o sertão não virou mar-keting – gracejam poemetos engraçadinhos
na rave do baticum cum cum cum mono-átono – embora valham outros suportes para a
palavra lembro seu cão sem plumas eterno em si por ser palavra, sempre; é tamanha a
pressa e a pressão que se faz impossível ver ‘claramente: o mais prático dos sóis, o sol
de um comprimido de aspirina’

nem educação pela pedra nem pela pedrada, acreditam que basta ter o equipamento para
garantir o conhecimento, imagine se chegaremos a consciência – falam de inclusão
digital onde só há gente aprendendo datilografia em teclado de computador – falam em
informação quando só há volume de dados caóticos, sem nexo nem conexão, na farsa da
fartura em rede – prevalecem os sabidos e são poucos os sábios – como diplomata você
teria de rever o mundo pelo choque da falência das moedas e as táticas do medo (usando
terror pelo terror) para manter democracias contaminadas de cobiça e isolamento – até
no futebol cria-se o padrão videogame onde craques e sistemas de jogo, de tão
infalíveis, ficam chatos – o nosso Barcelona que o diga: banalizaram o acaso do
imprevisível orgânico da vida, tudo é preciso – futebol de bottons…

salve poeta, salve-nos – sempre teremos sua poesia no olho do furacão e a sua fúria pelo
amor que nos resgata por dentro, em silêncio das praças em chama até a queda
definitiva dos hipócritas: ‘o amor comeu na estante todos os meus livros de poesia.
Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as
palavras que poderiam se juntar em versos. O amor comeu meu estado e minha
cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues
crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os
morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas
chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas
coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso’ – e desse amor nos
refazemos pela forja matriz, na força motriz sob frase nutriz em que só a palavra soa
além do verbo, pela pessoa!

com eterna ternura – TT Catalão, Brasília – 4 de abril de 2012”

***

Marcos Linhares é jornalista e escritor, presidente do Sindicato dos Escritores do DF e integrante do comitê gestor da Feira do Livro de Brasília (FeLiB).