A ombusdman da Folha de S.Paulo, Flavia Lima, lembrou, em sua coluna de domingo, que a grande imprensa tem se esforçado, no mês da consciência negra, para divulgar dados sobre as desigualdades entre brancos e negros na sociedade brasileira. O fenômeno, denominado por ela de “novembrismo”, é positivo, mas deve ser visto de forma crítica, considerando que o tema não deve estar circunscrito às efemérides e, sim, estar na pauta o ano todo.
O ponto positivo, observa Flavia, é a divulgação de dados baseados em órgãos oficiais de pesquisa e universidades – que demonstram uma realidade racista, principalmente vista em retrospecto histórico. “Os negros passaram a maior parte do século XX confinados às páginas policiais, de esporte e cultura dos jornais”, escreve. Com o final da ditadura militar, o debate étnico-racial ganhou mais força e, hoje, as redes sociais têm ajudado a imprensa a mudar os enfoques e adotar um ponto de vista mais crítico. A questão é evitar abordagens estereotipadas, como as que vê, por exemplo, em narrativas que insistem na superação pessoal ao invés de debates contextualizados.
Fora do novembrismo, há de se considerar o ensaio “Letra Preta”, publicado na piauí do mês passado e objeto de análise neste Observatório da Imprensa. Escrito pela jornalista Yasmin Santos, trata de sua própria experiência como estagiária e repórter da revista de conteúdo editorial progressista, mas ainda assim distante da representatividade da maior presença de profissionais negros na redação.
Na semana passada, o narrador esportivo Júlio Oliveira, do SporTV, ao discutir os recentes episódios racistas no futebol, também tocou no tema da representatividade em espaços jornalísticos. “É uma coisa que incomoda, porque você vê brancos discutindo temas de negros porque falta representatividade de negros participando. A gente olha para nossa redação: é um mar branco, um mar branco. Só que a gente trata de um segmento, que é o esporte, em que a essência é negra.”
Entre os desafios do jornalismo brasileiro na entrada da segunda década do século XXI há aspectos incontornáveis em relação ao racismo. O primeiro é a busca de dados contextualizados que demonstrem como vivemos numa sociedade excludente. Nesse sentido, novembro trouxe também a divulgação da pesquisa do IBGE demonstrando que, pela primeira vez, pretos e pardos representam mais da metade dos estudantes brasileiros nas universidades públicas.
Precisaremos também nos debruçar sobre o assunto tanto em relação a pautas quanto à representatividade nas redações. Levantamento da agência de jornalismo ÉNois, realizada em 64 veículos de mídia no ano passado, em onze estados, aponta diferenças salariais entre brancos e negros – cuja maioria ganha até 3 salários mínimos. Quando a pergunta é sobre ações de diversidade nas redações, 73% dos entrevistados dizem que elas não ocorrem nos locais em que trabalham.
O jornalismo ganha mais quando se torna dialógico e é capaz de incorporar as críticas nos modos de fazer e nas abordagens. A cobrança da sociedade pela representatividade torna o debate mais plural e interessante. Há uma relação entre essa demanda e a crise de mediação do jornalismo tradicional. As novas formas de produção e circulação de conteúdos trazem um ingrediente inédito para os aspectos intangíveis que determinam a credibilidade dos veículos. Nesse sentido, a discussão sobre lugar de fala veio para ficar.
O filósofo Pablo Ortellado observa que a expressão “lugar de fala” nasce da crítica de representação e da epistemologia dos subordinados, ou seja, da ideia de que os atores sociais devem falar por si mesmos e de que há diferentes efeitos de verdade a depender de quem fala. A constatação desses diferentes efeitos de verdade que variam segundo o lugar de fala faz com que um discurso crítico sobre a condição subalterna da mulher, quando enunciado por um homem, entre numa espécie de contradição performativa – como se ele negasse, na prática, o seu conteúdo.
A filósofa Djamila Ribeiro, em entrevista para a revista Caros Amigos, em 2017, acrescenta um aspecto importante na discussão sobre “lugar de fala”: a necessidade da diferenciação entre um impedimento a falar no lugar do outro e a legitimidade de dar voz a setores historicamente excluídos do processo, como as mulheres negras e os homossexuais, por exemplo. “É um conceito criado por feministas negras, sobretudo pela Patrícia Hill Collins, que, num primeiro momento, significa o quê? Quebrar com a voz única. Porque o branco se põe como universal, mas branco também precisa se marcar e entender que ele fala a partir de um lugar. Quem pode falar aqui no Brasil é o homem branco rico, hétero, que tem dinheiro, e a gente quer quebrar esse monopólio de lugar de fala. O segundo ponto é entender que o branco pode e deve falar de racismo, mas ele vai falar a partir de outro lugar, não a partir do lugar que eu tenho. Eu falo no meu, a gente cria uma multiplicidade e, juntos, a gente vai pensar uma sociedade diferente”.
Nesses dois anos, o assunto, felizmente, amadureceu, mas há muito ainda a avançar. A capacidade de escuta, a denúncia de práticas racistas e a busca de dados que comprovem o fosso social que ainda separa um Brasil de outro são temas que estão na ordem do discurso como demanda real da sociedade, para além dos novembros. O jornalismo não poderá descuidar deles, seja na seleção e encaminhamentos das pautas, seja na busca de maior representatividade em seus espaços institucionais.
Obs: Para quem tiver interesse em se aprofundar um pouco mais na temática do lugar de fala, publiquei no ano passado um artigo a respeito: “Lugar de fala e ética de si; política e discursos em rede”, na edição especial Cadernos Discursivos da Universidade Federal de Goiás.
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Pedro Varoni é jornalista.