‘Ah, deixa pra lá. A imprensa fala, fala, denuncia, exibe provas e mesmo assim não acontece nada, ninguém é preso, ninguém perde o mandato. Nem sei por que vocês jornalistas perdem tanto tempo com isso. É assim, sempre foi assim e vai continuar assim. Melhor é ir cuidar de outra coisa, certo?’
Errado. A sensação de que não acontece nada diante das denúncias dos escândalos, apesar da ação da imprensa, é ilusória. Acontece, sim. Não acontece é no ritmo da impaciência, nem no ritmo do que seria desejável, muito menos do que seria aceitável. Mas acontece. O problema é que o ritmo da mudança social e da mudança de costumes é lento. E o ritmo da justiça também. E ás vezes tarda – e falha, contrariando a frase famosa.
A menos que a mudança seja provocada por uma ruptura institucional – uma revolução –, ela ocorre dentro dos parâmetros definidos pelos ritos processuais, com ampla garantia de defesa aos acusados. E isso leva tempo. Às vezes, promove por decurso de prazo a impunidade dos culpados. Isso pode parecer ruim, mas não é. Essa demora é o preço que se paga pela garantia mínima de que inocentes não serão linchados em julgamentos precipitados por ritos sumários. E qualquer jurista sabe que é melhor deixar um culpado solto do que um inocente preso.
Até outro dia, tudo era normal…
Por açodamento, nós, jornalistas, sempre corremos o risco de sucumbir à tentação de denunciar, julgar e condenar, num rito único, sumário, esquecidos de que nosso ‘poder’ mal chega à denúncia, e olhe lá. A partir daí, é com a justiça, que no máximo pode ser cobrada para andar mais depressa, ou acusada de comprometimento com tal ou qual interesse. Ou mesmo apontada por venal, já que juízes são falíveis (e os há ladrões, assassinos, corruptos ou incursos em toda a ampla lista de delitos previstos nos códigos Penal e de Processo Penal).
Os mais jovens devem estar espantados com a avalanche de denúncias contra políticos e outras autoridades pela prática de nepotismo. Esquecem-se de que tal prática era socialmente aceita até… outro dia! Tal como fumar em restaurantes ou dirigir automóveis depois de encher a cara. Foram as denúncias sobre os males dessas práticas que resultaram na ‘mudança de hábito’ que se verifica atualmente, seja em relação ao fumo, seja em relação à lei seca, seja em relação ao nepotismo.
Até bem recentemente ninguém questionava o uso das passagens aéreas a que deputados e senadores têm direito. Faziam delas o uso que lhes aprouvesse e ninguém se incomodava. Sequer havia denúncias a esse respeito porque imprensa, judiciário e opinião pública consideravam tal prática absolutamente normal. E falo no plural, incluindo-me, sem correr o risco de ser considerado pecador impenitente: tenho 35 anos de jornalismo e só de uns poucos anos para cá comecei (começamos, e aqui te incluo também, leitor mais velho) a me (nos) dar conta de que passagem aérea paga com dinheiro público só deve ser usada pelo titular e para viagens diretamente inerentes ao exercício do mandato. Até outro dia era absolutamente normal ver mulher, irmã, filho ou marido trabalhando no gabinete do/da titular do mandato e ninguém via nada demais nisso. Até outro dia a imprensa não tinha a menor preocupação com o uso da verba indenizatória porque parecia normal que parlamentar usasse o dinheiro para despesas particulares. Até que o deputado Edmar Moreira foi acusado de usá-la para pagar contas de suas próprias empresas de segurança. E ninguém se importava com isso. Inclusive nós, jornalistas. Agora, as coisas começam a mudar. Lentamente, sim, mas começam.
Mudanças são lentas
Este é o ritmo das mudanças. Foi assim na campanha republicana, quando alguém percebeu que não era aceitável que o poder fosse exercido por um monarca consuetudinariamente assentado num trono de ouro. Foi assim quando alguém se lembrou que a escravidão era uma prática repulsiva, detonando o movimento abolicionista.
Um dia, lá no futuro, quando não mais estarei aqui – nem tu, leitor – comentaremos estarrecidos como era possível, em pleno século 21, famílias terem seres humanos a seu serviço para a realização de tarefas de casa, os chamados ‘empregados domésticos’… Que horror, não é mesmo? Da mesmíssima forma como hoje nos horrorizamos de como um dia houve senhores de escravos que os tratavam como semoventes. E bater neles, ou mesmo matá-los, não consistia crime algum. Nem doía na consciência.
A mudança social e a mudança de costumes são lentas, muito lentas. Mas acontecem, e a história é a prova disso.
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Jornalista