Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Na mira da pós-modernidade

Como a vida, o caminho do conhecimento é aberto a inúmeras possibilidades, principalmente no contexto da pós-modernidade, no qual praticamente se extinguem as linhas divisórias nos diversos campos da ação humana. Ruíram as muralhas protetoras construídas na modernidade para proteger a ordem, o trabalho, a disciplina, as instituições, as religiões, os valores, a hierarquia e as tradições. Hoje, delas restam apenas fragmentos que se movem no ar em todas as direções, sem qualquer compromisso com o centro, uma vez que este também se dissolveu. A mídia refletiu esse desmoronamento.

E essa ruptura não foi silenciosa. Ela teve ecos. Por um lado, abriu as portas para a liberdade, para o excêntrico, para a democratização das relações familiares, para um novo tipo de arte, para a tolerância, para o amor livre, para novas possibilidades de realização pessoal. Por outro, ela derrubou as ancoragens que sustentavam as identidades, o caráter e a moral. Os efeitos das mudanças foram tantas a ponto de ser estudados por alguns autores e intelectuais como uma mudança de época, ou seja, da modernidade à pós-modernidade. Contudo, apesar de tantas evidências, essa visão está longe de ser unânime. Para alguns estudiosos e ensaístas, vive-se atualmente em uma fase de transição, na qual a pós-modernidade é vista como um processo histórico sobre o qual abriram-se inúmeros debates, principalmente no meio acadêmico.

No entanto, as divergências sobre o tema parecem abranger mais a questão semântica do que os sintomas a ele relacionados. Não há como refutar as mudanças significativas ocorridas nas últimas décadas, por meio das quais testemunhou-se uma verdadeira desconstrução dos diversos pilares das sociedades contemporâneas. Como exemplo, basta observar o que aconteceu com a família, com o trabalho, com a igreja, com o Estado, com a produção, com o capital, com o saber, com a ética, com os grandes discursos e com a tradição.

A família enfraquece

A família nuclear, considerada como a base dos filhos para a formação do caráter e da personalidade, vem perdendo sua força. Os casamentos, assim como os bens materiais, parecem ter uma prazo de validade cada vez menor. Hoje, existem diversos novos arranjos familiares nos quais as relações de poder e de autoridade paternas estão sendo substituídas progressivamente por diálogos abertos, o que não deixa de ter o seu lado positivo ao se romper com as tradicionais formas de repressão. Por outro aspecto, no entanto, a ausência de limites dessa nova liberdade adquirida pelos filhos pode e está sendo extremamente prejudicial à sociedade. Basta ver no Rio de Janeiro, por exemplo, a conduta da geração de ‘pit boys’ e brigões da noite espalhando a desordem e a violência por onde passam.

As influências da mídia, com raras exceções, superam qualquer tentativa de educação dos filhos com base em princípios e valores morais sólidos. Aliás, no contexto da pós-modernidade, não há espaço para solidez, pois o que impera, é a ‘liquidez’ e a flexibilidade. Por mais que os pais (ou apenas um deles, em muitos casos), se esforcem, a tendência é que os filhos se comportem seguindo os modelos divulgados pelos meios de comunicação de massa, que abrem as portas para diversos mundos nos quais se pode assumir as identidades que mais lhes favoreçam, dependendo das circunstâncias.

O curto prazo

O trabalho, embora ainda considerado o meio legítimo para suprir as necessidades de bens materiais ‘no decorrer da vida’ não dá mais conta de tamanha responsabilidade a longo ou até mesmo a médio prazo. A certeza que se tinha da permanência numa mesma empresa por muitos anos ou até mesmo até a aposentadoria, de conhecer e de criar laços sociais e de construir, com esses laços, o caráter e a identidade, como frisou Sennett (1998), esvaneceu-se. No decorrer dos últimos anos, os contratos de trabalho têm sido temporários e, geralmente, ligados a projetos com prazos pré-determinados.

Em ambientes altamente competitivos, a ética abre espaço para ousadas estratégias voltadas para o cumprimento de metas de produção cada vez maior. As identidades dos trabalhadores, além de acompanharem a velocidade das mudanças, se moldam às necessidades dos interesses na manutenção do emprego, nas promoções, qualquer que seja o preço, salvo raras exceções. Mas as mudanças não param por aí. Nas empresas de grande e médio porte, a política de não se criar vínculos empregatícios tem sido adotada gradativamente. A terceirização foi o caminho encontrado pelos administradores como forma de não se estabelecer compromissos trabalhistas com os empregados, de oxigenar a mão de obra, de reduzir despesas e, conseqüentemente, de aumentar a lucratividade.

A religião agoniza

A Igreja, melhor dizendo, as religiões e seus dogmas, os quais representaram por tanto tempo uma ideologia a ser seguida durante a vida, vem perdendo fiéis a olhos vistos. O Cristianismo, por exemplo, que cultivava (e ainda cultiva) a culpa, o pecado, o castigo e o sacrifício, está cada vez mais enfraquecido. Se a modernidade substituiu o divino pela razão e pela ciência na crença de que somente desta forma seria possível promover a liberdade, o conhecimento e uma vida satisfatória a toda humanidade, a pós-modernidade abriu mão de tamanha pretensão. Sem a âncora divina, ela desprezou o espírito e valorizou a mente e o corpo em busca da liberdade individual.

Mas, no contexto atual, para se atingir essa liberdade, a mídia, por intermédio da publicidade e do seu discurso sedutor, aponta um único caminho: o do consumo de bens materiais e simbólicos. Ora, se a liberdade está presa ao consumo, seria hipocrisia acreditar que o abandono da religião libertaria os indivíduos. O que de fato vem ocorrendo, é a substituição da religião pelo consumo, motivado pelo desejo e, principalmente, pelo impulso. Se isso representa ‘liberdade’, os dicionaristas, autores e estudiosos terão de rever muitos de seus conceitos.

Estado, o social pelo neoliberal

O Estado, por sua vez, com sua estrutura pesada, não só encolheu o seu raio de atuação social, como também impulsionou seus objetivos pró-capitalistas. Em nome do neoliberalismo amplamente defendido pelos países ricos e difundido pela mídia, ele promoveu privatizações em série passando a atuar como mero regulador por intermédio das Agências Nacionais. Ao leiloar estatais, milhares de trabalhadores perderam seus empregos em decorrência das re-engenharias implantadas pelos novos donos com a finalidade de tornar suas empresas mais rentáveis e competitivas.

Quanto à produção, percebe-se que a circulação das mercadorias aumenta em ritmo alucinante. Os bens duráveis são cada vez menos duráveis. O consumismo, altamente incentivado pela mídia, foi impregnado na vida dos indivíduos e das sociedades como forma de preencher o vazio que se formou pelo enfraquecimento das relações familiares, da religião, das ideologias; pela fragilidade das identidades e do caráter; e pela perda da crença na possibilidade de uma vida futura melhor, mais justa e com menos desigualdades sociais e econômicas. Sem a crença no futuro, vive-se intensamente o presente, o efêmero, o prazeroso. E, para dar conta disso, os bens são substituídos em prazos cada vez menores. E o mercado, insaciável, aplaude de pé!

A serviço do mercado

No campo do saber, as mudanças não foram menos impactantes do que em outras áreas. Instituído como um processo de ‘interiorização’, o saber na modernidade era considerado uma espécie de propriedade das escolas, das universidades e do corpo docente. Estabelecia-se desse modo uma relação de autoridade e obediência entre professores e alunos. E para legitimar essa ‘autoridade’, prevaleciam os grandes discursos, os quais, salvo raras exceções, eram aceitos e incontestados, ignorando o fato de que o mundo já estava se mostrando progressivamente mais burguês e capitalista.

Hoje, o saber é cada vez mais exteriorizado. Com a revolução da informática, ensina-se não só os conteúdos e teorias, mas também o uso de terminais e redes para transformar o saber em produção de mercadorias, com valor de uso e de troca, possibilitando a circulação do capital nas sociedades chamadas ‘pós-modernas’. O saber, portanto, tem se voltado mais aos interesses mercantis do que à promoção do bem-estar da humanidade. Como exemplo, basta observar a ‘indústria das patentes’ que cresce escandalosamente, privatizando até mesmo o direito à vida, como no caso das descobertas realizadas pelos laboratórios farmacêuticos.

Os novos paradigmas

Já quanto à tradição, nos moldes em que é conceituada por dicionaristas, aquela que transcendia por gerações, pode-se afirmar que vem desaparecendo progressivamente e assimilando novos formatos exibidos pela mídia. Aos poucos, até mesmo nas instituições em que ela mais se fazia presente, como nas religiões, por exemplo, ela tem sido praticada de forma cada vez menos tradicional. No Globo Online de 12/8/2004, uma matéria sobre a peregrinação do Papa João Paulo II no santuário de Lourdes, na França, desperta a atenção para a questão da tradição. A manchete dizia: ‘Católicos podem enviar e-mails e acender velas para Lourdes num web site’. A matéria mostra o que já vem acontecendo há muitos anos. A igreja se rendendo às novas tecnologias e a tradição seguindo nesse rastro.

Há quem acredite que pós-modernidade é a tradição reinventada. Pode até ser, desde que se aceite a idéia de que, na atual conjuntura, a tradição é ditada cada vez mais pela mídia que, por sua vez, estabelece uma conexão direta com o consumo. Alguns exemplos: festa de natal, dia dos pais, dia das mães, páscoa, dia dos namorados, dia da criança. Representam tradições? Parece que sim, uma vez que são vivenciadas como datas especiais e envolvendo um certo ritual, mais especificamente, o ritual do consumo, o que se constata pela abordagem e pelo discurso da mídia nessas ocasiões todos os anos.

Mas a tradição ‘tradicional’ ainda resiste além da esfera do consumo. Fora dos grandes centros urbanos, ela se manifesta de forma mais intensa por meio de festas populares, comemorações, rituais de dança, folclore, atitudes e até mesmo preconceitos e comportamentos. É provável que determinados valores ainda estejam latentes nos sujeitos pós-modernos por conta da tradição. Talvez ela ainda esteja impregnada como um ranço da solidez da modernidade. Mas até nisso, a tolerância e a flexibilidade tem avançado. É tudo uma questão de tempo.

As incertezas e a simplificação

Aliás, o tempo é outro dilema da pós-modernidade. Se na ‘modernidade sólida’, como apregoa Bauman em suas últimas obras, era possível planejar a vida a longo prazo, na pós-modernidade tal façanha tornou-se impraticável. Em meio às rupturas de instituições, de valores e das grandes verdades, resta à vida humana mergulhar no mar de incertezas. Sem memória do passado e sem a crença no futuro, resta viver o presente intensamente e usufruir das maravilhas oferecidas pelo mercado por intermédio da mídia.

Nesse sentido, a condição pós-moderna favorece a velocidade, a flexibilidade, a efemeridade, a alta rotatividade de bens e de relacionamentos. A mídia, como instrumento poderoso do mercado e do poder, fomenta com eficácia essas novas maneiras de viver, de sentir, de amar, de fazer escolhas rápidas sem que para isso seja necessário pensar. Enfim, ela leva a uma visão simplificada do mundo desprezando a sua complexidade e os processos históricos que permeiam entre o ‘bom’ e o ‘mau’ e entre o ‘certo’ e o ‘errado’ . Essa visão, proporcionada pelo pensamento único, exclui, de modo geral, qualquer tentativa de leitura crítica dos fatos divulgados pelos meios de comunicação de massa. Com raras exceções, aceitam-se as versões impressas ou exibidas pela televisão, rádio ou Internet.

As novas ancoragens

Nesse teatro pós-moderno, sem as ancoragens da modernidade sólida, resta ao indivíduo e às massas procurar pelo seu espelho de identificação naquilo que vai preencher o vazio de seus espíritos: na própria mídia. Com a sua onipresença, ela convida a todos para uma diversidade de mundos culturais exteriores fora das experiências diretas e para o consumo. Ciente do poder que tem, ela exibe modelos de pensamento, de comportamento, de identidade, de caráter, de moda, de corpo, de beleza, de amor, de relacionamentos, de liberdade, de carreiras bem sucedidas, enfim, de tudo que favoreça o consumo e que legitime as relações de poder do mercado sobre as massas. E ela cumpre esse papel com eficácia e efetividade. Como instrumento poderoso do capitalismo, da globalização e dos interesses mercadológicos, ela escancara as portas ao mundo do prazer, do entretenimento e do espetáculo.

Com seu discurso sedutor e por vezes infantilizante, como ressaltou Ramonet (2003), ela fomenta o narcisismo, o hedonismo, o individualismo, a estética e o erotismo. Tudo para atender às leis mercantis que estão acima de qualquer preocupação com os tecidos sociais, com a conscientização, ou com a redução das desigualdades. Isso vai ao encontro do que escreveu Robert W. Mcchesney no artigo ‘Mídia global, neoliberalismo e imperialismo’, fazendo menção a Thomas Friedman, do New York Times: ‘Tudo o que as pessoas precisam fazer é sentar-se, calar-se e comprar, e deixar que os mercados e a tecnologia realizem suas maravilhas mágicas’.

De fato, parece ser o que acontece, pelo menos para aqueles que ainda não fizeram coro à legião de excluídos do mercado. Vive-se num ambiente cada vez mais saturado pela mídia. Ela está em toda parte, seja em casa, no trânsito, no trabalho, na escola, no clube, na praia, nos shoppings, nas ruas, nos aeroportos, enfim, em todo espaço público e privado. No mesmo ritmo frenético da circulação do capital e das mercadorias, ela dita os padrões a serem seguidos e os valores a serem consumidos.

Pelas esferas da cultura de massa, da publicidade e muitas vezes até mesmo da informação jornalística, os meios de comunicação ditam, com sutileza, os paradigmas pelos quais as pessoas devem conduzir suas vidas. Nesse sentido, eles impõem a velocidade, a efemeridade, a mobilidade e o deslocamento das identidades. Se um determinado modelo é válido hoje, amanhã já estará obsoleto, se assim o mercado exigir. Os indivíduos, vistos como meros consumidores, portanto, não dotados de senso crítico, vão se adaptando e adotando os modelos impostos.

Dessa forma vão, nesse palco pós-moderno, formatando suas diversas identidades, fluidas, mutáveis, deslocadas, que nunca se completam, sem qualquer tipo de referência que se volte para a construção de uma consciência crítica ou vigilante. Passam a atender as expectativas do poder midiático, que por sua vez funciona como instrumento hegemônico de um mercado cada vez mais globalizado. Desnecessário afirmar que tudo isso vai preencher, na medida exata, o vazio que se formou nos indivíduos e nas massas no contexto da pós-modernidade.

Os desafios para o jornalista

No entanto, para desconstruir essa condição de dependência de identificação que se estabeleceu com a mídia e para transformar os indivíduos em atores sociais e por conseqüência, as massas em comunidades emancipadas, necessário se faz que a própria mídia, por meio da atuação de seus profissionais, reveja a sua função. Além de informar, cabe ao jornalista o papel de educar (no sentido pedagógico), de transmitir conhecimentos e de contribuir para a formação de uma sociedade mais justa e mais igualitária.

Assim, em que pesem as transformações provocadas pela convergência das mídias e pela revolução digital; em que pese a velocidade imposta como um dogma ao jornalista; em que pesem a força e o poder das grandes conglomerações midiáticas com suas políticas e estratégias voltadas aos interesses meramente comerciais, cabe ao jornalista cultivar, incessantemente, a consciência crítica e a visão do mundo guiada pelo pensamento livre.

Acredita-se que, agindo dessa forma no exercício da profissão, ele terá condições de se agregar a seu público supostamente ‘pós-moderno’ e contribuir para o processo de sua emancipação. A expectativa é que, emancipados, os indivíduos, e conseqüentemente as massas, poderão atuar como sujeitos e como comunidades. Assim, dotados de senso crítico, ambos terão condições de fazer a própria leitura do que é divulgado pela mídia, o que será de grande valor para suas experiências e para a construção de sua história. Só assim será possível fazer valer, de fato, o verdadeiro significado da palavra ‘democracia’, aquele que, diferentemente do proclamado nos grandes discursos, reencontra o sentido dos conflitos políticos e sociais.

É evidente que essa aspirada emancipação depende de muitos outros fatores de ordem estrutural como políticas adequadas para a saúde, para a educação (contextualizada e voltada para as possibilidades de conhecimento que se abriram por meio das redes virtuais e interativas, o que abrange a inclusão digital), para a geração de empregos e para moradia com condições de abrigar, com um mínimo de dignidade, os arranjos familiares.

Nesse processo de emancipação, o jornalista tem um papel fundamental. Ele precisa, acima de tudo, ser atuante, crítico e ter uma visão abrangente das reais deficiências de todas as mídias. Mas isso não é tudo. Ele tem de acreditar na possibilidade de um mundo melhor, no qual prevaleça o altruísmo em detrimento do individualismo, no qual a vida, a consciência crítica, os laços de lealdade e solidariedade, a inclusão social, a amizade e o amor, sejam os verdadeiros alicerces da humanidade. Sem dúvida, é um desafio. As dificuldades, com certeza, serão muitas. Mas nada é impossível para quem acredita e age no sentido de alcançar um ideal, ainda que esse ideal seja o próprio caminho a percorrer, com todos os obstáculos que terá de enfrentar.

******

Estudante de Jornalismo, Rio de Janeiro