Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sem saber onde o galo cantou

O fato de o Brasil ter sido um filho espiritual da contra-reforma promovida pela Companhia de Jesus, o que nos conferiu o caráter coletivista e apostador na mística do líder público, volta e meia convoca os escrúpulos dos filhos do protestantismo. O que, aliás, já virou um chavão: o assombramento frio e calculista dos anotadores de situações quando, na condição de jornalistas, passam a bulir com o frenético babalaô brazuca, a requerer respostas para tudo na figura do político ou do pai-de-santo (quando não, na figura farsesca do médico cirurgião que bate bumbos às sextas-feiras).

Estamos falando de duas figuras da terra do Tio Sam que, na semana passada, em seus relatos de viagem, por assim dizer, portaram-se no melhor estilo ‘Dr. Livingstone, I presume’, afetando uma condescendente compreensão ‘superior’ do que seria o Brasil e seus fenômenos autóctones. O primeiro deles é Michael Kepp, em seu artigo intitulado ‘Deus existe ou ele é o Chico Buarque’, publicado na edição corrente da revista Superinteressante. Eis o que escreve Michael Kepp:

Por que os brasileiros tratam seus melhores artistas e atletas como deuses? Talvez porque lhes faltem heróis políticos. Brasileiros ridicularizam seus políticos, os vêem como incompetentes ou corruptos. Nem os fundadores do país escapam. Dom João VI é lembrado como glutão e negligente. E reza a lenda que o igualmente sem modos dom Pedro I deu sua declaração de ‘independência ou morte’ durante um descanso na estrada entre São Paulo e Santos, onde teve uma séria diarréia.

‘Nos Estados Unidos, meu país de origem, são os fundadores do país e outros heróis políticos que são tratados como ícones. Os americanos colocam os rostos deles nas cédulas e moedas, lembram-se deles em feriados nacionais e os imortalizam com monumentos imponentes e esculturas em montanhas.

‘Fazendo isso, os americanos endeusam não os homens, mas os princípios que eles defenderam ou, no caso de Lincoln e Martin Luther King, pelos quais morreram. Já o endeusamento de Chico [Buarque] é baseado não em uma bandeira que ele levantou, mas em uma conjuntura de qualidades pessoais em torno das quais os brasileiros criaram um culto a sua personalidade.’

Como? Americanos não endeusam políticos? Uai, quem criou a cultura pop? Quem alimenta a máquina devoradora de criancinhas chamada Michael Jackson? Quem inventou como político ‘state of the art’ um alcoólatra chamado George W. Bush? Quem foi votado massivamente porque confessava ‘…eu desejo muito que se possa evitar completamente a procriação de pessoas erradas. E o que se deve fazer, quando a natureza maligna dessas pessoas for suficientemente flagrante? Os criminosos devem ser esterilizados, e aqueles mentalmente retardados devem ser impedidos de deixar descendência. A ênfase deve ser dada à procriação de pessoas adequadas’? Foi vigésimo sexto presidente dos EUA, Theodore Roosevelt (1901-1909).

Frase inocente

A primeira lei dispondo sobre eugenia, no mundo, foi promulgada nos EUA em 1924 e vigorou até 1965. Pretendia alterar toda a composição étnica e racial dos Estados Unidos para satisfazer os padrões estabelecidos pelos defensores da eugenia. É nesse tipo de homem e idéias que americanos costumam votar, volta e meia.

E volta e meia jornalistas iletrados, sobretudo, ainda usam o bordão ‘o Brasil não é um país sério’, indevidamente atribuído ao presidente De Gaulle. A frase foi disparada durante a chamada ‘Guerra da Lagosta’, em 1963, quando disputávamos com a França o direito de pesca no litoral oceânico do Nordeste brasileiro. E é de autoria do embaixador Alves de Souza, conforme relata em suas memórias, dita por ele numa visita ao Quai d’Orsay (sede da chancelaria francesa), onde, aturdido pelas orientações geopolíticas caleidoscópicas recebidas do Itamaraty, desabafou: ‘Decididamente o Brasil não é um país sério’.

Pois bem: a frase, que já é dessacralizada até por beletristas de faculdades de Jornalismo, foi colocada com todas as letras na boca do general Charles De Gaulle no artigo que Larry Rohter fez para o New York Times de domingo (31/10), sobre o Brasil ter entrado para o clube ‘negro’ dos países que omitem dados nucleares a autoridades gringas.

Talvez esse tipo de diatribe não seja própria de gente gringa que escreve em jornal e revista sobre fenômenos autóctones. Já conhecemos este truque, pelo menos desde os anos 1970, quando o deputado Francelino Pereira, ao fazer uma visita à Câmara Municipal de São Paulo, reclamara, na frente de um punhado de repórteres, que o elevador não chegava nunca. E disparou um ‘que país é este?’ A frase, inocente e mecânica, foi convertida no outro dia em citação filosófica por quatro grandes jornais brasileiros…

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Jornalista