Além do acirramento do sentimento antipetista e do recurso massivo a fake news, um dos fatores decisivos para a eleição de Bolsonaro teria sido, como demonstram diversas pesquisas, a promessa de um governo limpo e em eterna vigilância contra a corrupção. Passado pouco mais de um ano, essa última premissa encontra-se em xeque, como evidencia o artigo Bolsonaro e a arte de ignorar denúncias de corrupção contra seu governo, publicado pela edição brasileira do El País.
Seu autor, Afonso Benites, parte de uma premissa correta e comprovável (o atual governo ignora denúncias de corrupção), mas negligencia fatores determinantes que acabam por colaborar ou mesmo viabilizar tal não-reação.
“Não era assim nas gestões anteriores, quando havia diferentes graus de constrangimento, pressão da base, preocupação ‘com a opinião pública’”, afirma, já no primeiro parágrafo. Ou seja, o autor circunscreve sua análise a uma dinâmica interna ao governo, deliberada, como se ela não dependesse, em maior ou menor grau, também da pressão de fatores externos à administração: mídia, lobbies específicos e, sobretudo, a reação da sociedade.
Campanhas midiáticas
Há, nas bibliotecas de pós-graduação, diversas pesquisas acadêmicas demonstrando – e qualquer pessoa honesta e com boa memória pode se recordar – como era o comportamento da mídia ante qualquer indício de corrupção nas administrações Lula e Dilma. Tratava-se de uma verdadeira campanha que, a partir de um determinado momento, passou a obedecer a uma lógica sistemática: de manchete no órgão denunciante à capa da Veja (ou vice-versa) e daí para longos minutos no Jornal Nacional. E uma campanha que, ante a eventual inação governamental, crescia de tom dia após dia, até que o acusado, houvesse provas ou não, fosse demitido.
Tal procedimento se repetiu dezenas de vezes entre 2003 e 2016, tanto faz se fosse uma tapioca comprada com cartão corporativo ou evidências sérias de desvio de milhões de reais – e a questão, aqui, não é a valorização negativa ou positiva de tal comportamento midiático (que já foi objeto de análises em outros artigos de minha autoria), mas a observação de que com a mudança do governo, ele se alterou.
Denúncias graves
Pois tal denuncismo sistemático simplesmente acabou. O modus operandi da mídia ante a corrupção no governo Bolsonaro é totalmente outro, como se pode constatar, por exemplo, nas gravíssimas denúncias que pesam sobre o chefe da Secom, Fabio Wajngarten: receberam algum destaque por dois ou três dias na imprensa, mas foram solenemente ignoradas pelo Jornal Nacional, veículo com potencial de popularizar nacionalmente as denúncias.
Na mesma semana, outro exemplo contundente: uma deputada federal do círculo íntimo do Planalto admite compra de votos para aprovação da “reforma da Previdência”, mas, de novo, a cobertura midiática é mínima e restrita. Imaginemos a repercussão do caso se ocorresse no governo Dilma…
Perplexidade e paralisia
Assim, na prática, se adotarmos como objeto de estudo o comportamento midiático ante a corrupção nas duas últimas décadas, a diferença de tratamento resulta em dois pesos, duas medidas. E além dessa distorção, que diz respeito especificamente ao objeto de debate deste Observatório, nos governos petistas havia, à mínima denúncia, por um lado um pelotão de promotores (sobretudo após o advento da Lava Jato) disposto a investigar, e, por outro, uma matilha de parlamentares com disposição para transformar a denúncia em um fato oficial, faturando politicamente.
Nada disso se observa, atualmente, no que diz respeito ao que a mídia mundial (mas não a brasileira) chama de governo de extrema-direita; as instituições, a Justiça e, sobretudo, os parlamentares de oposição parecem paralisados por um misto de perplexidade, medo e falta de republicanismo – quando não por interesses inconfessáveis.
Ao contrário do que afirma o artigo do El País, não é o governo Bolsonaro que domina a “arte” de ignorar denúncias de corrupção. É a omissão da mídia e das instituições, somada à gritante inação das forças políticas e da sociedade, que tem permitido tal negligência.
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Maurício Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: caleiro.mauricio@gmail.com.