A manutenção do apoio de cerca de 30% da população ao governo Bolsonaro e sua condição de líder de intenção de votos para 2022, em disputa renhida com Lula, vêm sendo confirmadas desde o final de 2019 pelos principais institutos de pesquisa. Trata-se de um resultado que causa alguma perplexidade e demanda reflexão.
Gestão em xeque
Já em seu segundo ano, os fatos mostram, por um lado, que se trata de uma administração tecnicamente problemática, com graves ocorrências nas áreas de educação, meio ambiente, saúde e relações exteriores. O estilo do presidente tem sido caracterizado pelo improviso, por privilegiar o embate ideológico em detrimento das soluções racionais e pela sobreposição da religião e da intuição à ciência e à cultura, além do gosto pela provocação ou agressão verbal a opositores e jornalistas. Tal modus operandi destoa, decerto, dos padrões vigentes para uma gestão contemporânea eficiente.
Por outro lado, também não se verifica, até o momento, nenhum acerto indiscutível no governo Bolsonaro. Mesmo na economia, os últimos índices, relativos ao final de 2019, não apenas desmentem a fantasia de recuperação consistente – alimentada com devoção e wishful thinking pela mídia corporativa -, mas apontam retrocessos em áreas relevantes (como, por exemplo, no aumento de endividamento das famílias e no agravamento da crise industrial). Os 644 mil empregos com carteira criados em 2019 são, é claro, uma notícia positiva, ainda que a qualidade desses empregos, incluindo os salários defasados, precise ser levada em conta, bem como o fato de que representam menos de 10% dos sete milhões de empregos prometidos como resultado dos ataques aos direitos trabalhistas e previdenciários (“reformas”, na novilíngua midiática). É forçoso, ainda, contextualizar tal índice: o total de mão de obra desempregada ou subempregada no país subiu de 23,7%, em 2018, para 47,7%, em 2019, segundo o IBGE.
Hipóteses para aprovação
Ante tudo que foi abordado acima, coloca-se uma questão objetiva: por que o apoio a Bolsonaro mantém-se relativamente estável e ele continua a ser um dos dois favoritos na corrida presidencial? Uma hipótese seria a manutenção da percepção, entre os apoiadores do governo, de que a economia sofre, ainda, dos efeitos de uma grave crise econômica cujo principal (quando não único) responsável seria o governo Dilma Rousseff. Trata-se de uma visão plausível e em parte correta, mas que parece não dar o devido peso ao fato de que faz três anos e cinco meses que a petista não mais comanda o país e, assim, despreza tanto os efeitos econômicos da Lava Jato (paralisia das maiores empreiteiras do país) quanto as medidas recessivas adotadas por Temer (teto de gastos e virtual retirada do Estado como agente de estímulo da economia), além dos efeitos sociais do ultraliberalismo de Guedes.
Há ainda, como segunda hipótese, o que eu chamo de “ilusão do empreendedorismo”: os efeitos da coincidência entre a ascensão de Bolsonaro e o boom, no Brasil, dos aplicativos de mobilidade e de entregas. Embora submetido a jornadas extenuantes e a pagamentos mínimos, esse “proletariado de serviços na era digital”, como o define o sociólogo Ricardo Antunes, parece, em grande parte, sobrevalorizar a questão da flexibilidade de horário e a ilusão de ser seu próprio patrão, vendo-se como grandes empreendedores em potencial. Embora o fenômeno seja mundial, muitos de seus entusiastas, no Brasil, parecem atribuir a permissão para operar ao laissez faire de Guedes/Bolsonaro, o que inclui, ainda, o receio de que o retorno de uma esquerda “estatizante” destrua seus “negócios”.
Permanência das fake news
Uma terceira hipótese para a condescendência com Bolsonaro seria a persistência das fake news. Afinal, quem não está isolado em bolhas ideológicas e convive com pessoas de diversos níveis socioeconômicos, faixas etárias e graus de interesse por política sabe que a máquina de fake news bolsonarista não se limitou às eleições e continua a todo vapor.
Dia e noite, ininterruptamente, seguem circulando “notícias” que atingem não apenas os diretamente engajados em tais redes ou quem com eles se relaciona virtualmente, mas qualquer um que não esteja blindado numa bolha oposicionista. E não dá para culpar somente os algoritmos: basta, por exemplo, entrar anonimamente no YouTube para se deparar com uma série de sugestões de vídeos que são fake news bolsonaristas.
Percepção distorcida
Assim, enquanto se regozijam os militantes pró-Bolsonaro que querem que a mentira prevaleça, um público, muitas vezes sem a mínima educação política para discernir o verdadeiro do falso, é bombardeado incessantemente, por um lado, com “notícias” sobre barbaridades recentes cometidas por Lula e Dilma e pela iminência de uma ditadura comunista (!); e, por outro, por “matérias jornalísticas” mostrando grandes realizações do governo Bolsonaro, inclusive pavimentação da Transamazônica e construção de estradas intercontinentais – sendo que nem uma coisa nem outra procedem.
Viria daí, de acordo com essa terceira hipótese, o que eu qualifico de enorme distância entre o Diário Oficial e o WhatsApp, ou seja, entre as ações concretas do governo Bolsonaro e a percepção positiva que setores consideráveis da população têm do que seja o seu governo. Há base para tal suposição: segundo estudo da organização Avaaz, mais de 98% dos eleitores do militar foram expostos a uma ou mais manchetes falsas durante a campanha e quase 90% acreditavam que elas eram verdadeiras.
Ante tal quadro, em relação ao que nos interessa particularmente neste Observatório, cabe perguntar: qual tem sido e qual poderia ser o papel da mídia?
Dificuldades e vícios midiáticos
A apuração e a documentação do fenômeno das fake news apresentam dificuldades consideráveis ao jornalismo devido à sua própria arquitetura de circulação, com múltiplas e anônimas origens de difusão; com circulação e multiplicação interpessoal em redes sociais parcial ou totalmente ocultas do público em geral; e, no caso específico do WhatsApp, com criptografia aplicada às mensagens. Como apurar o virtual e pessoal?
Por outro lado, o fato de as fake news políticas terem se tornado, desde as últimas eleições, um fenômeno massivo na vida social brasileira – com bases diárias nos ambientes familiares, trabalhistas, de lazer, bem como nos espaços públicos da própria internet, contraposto às dificuldades da mídia para retratá-lo em sua pervasividade, onipresença e efetividade – é revelador do quanto o jornalismo, via de regra, encontra-se limitado por práticas e vícios, engessado em armaduras de apuração (como o hábito de se limitar a ouvir autoridades) que o impedem de captar a contento fenômenos sociais que não sejam legitimados pelo poder.
Esforços de reportagem
Tanto assim é que, mesmo sendo um tema na ordem do dia e, como disse, onipresente na sociedade brasileira, as fake news não se tornaram, nesse quase um ano e meio que nos separam da campanha presidencial na qual se tornaram preponderantes, objeto de matérias jornalísticas frequentes e, muito menos, de acompanhamento jornalístico diário. Na verdade, contam-se nos dedos as reportagens sobre o tema, com destaque para o premiado trabalho de Patrícia Campos Mello, um dossiê na revista piauí e uma ou outra incursão introdutória ao tema por alguns poucos periódicos.
Chama a atenção que, em sua maioria, tais matérias concentrem seus esforços em tentar desvendar como operaria a máquina bolsonarista de difusão. Trata-se de louváveis esforços de reportagem, mas que, contrapostos à escassez de outros tipos de abordagem, acabam por revelar uma espécie de fetiche pela materialidade do objeto jornalístico, como se este devesse obrigatoriamente ser fotografável e suas matérias-primas documentadas à maneira de uma evidência forense. Assim, quando deparada com a fluidez e a fugacidade do espectro digital, meio de propagação das mentiras virtuais, a mídia tem falhado naquilo que seria presumivelmente menos trabalhoso apurar: as dinâmicas de recepção e circulação diuturnas de fake news e o grau de influência destas junto a determinados grupos sociais.
Jornalismo e democracia
O resultado, ressalvadas as exceções mencionadas, é uma cobertura muito aquém da importância do tema, não apenas para as eleições, mas para a própria democracia, dada a relação, já estabelecida em pesquisas acadêmicas internacionais, entre fake news e percepção pública da realidade, relação que parece estar sendo, neste momento, determinante para os rumos políticos do país.
Retratar tal fenômeno em sua complexidade constitui, hoje, um desafio urgente para o jornalismo brasileiro e uma possibilidade de contribuição à verdadeira democracia.
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Maurício Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).