Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma nova censura: burocracia, bloqueios e algoritmos

(Foto: Freepik)

Publicado originalmente no site objETHOS
Muitas vezes, quando falamos em censura, remetemos à censura vivenciada na época do regime militar brasileiro. Nesse período, o país sofreu ações institucionais que dificultavam o acesso às informações consideradas subversivas; era um cerceamento abrupto e vinculado à tortura física e psicológica, o que acabou prejudicando a produção jornalística e cultural. Atualmente, podemos identificar outros tipos de censura, também abruptas e danosas, mas que se apropriam de trâmites burocráticos, algoritmos de grandes empresas de tecnologia da informação e das possibilidades de conexão no ciberespaço. São as novas faces da censura que estão sendo apresentadas aos brasileiros.
O jornalista Joel Simon comenta que estamos diante de uma nova face da censura, na qual os governos e outras instituições que não são estatais operam com novas formas de reprimir a imprensa, jogando com a grande quantidade de informações que recebemos. O jornalista Felipe Pena destaca que a censura é exercida de forma abrupta e não segue preceitos formulados por agentes representativos da sociedade, caracterizando-se por ser uma ação típica de regimes ditatoriais. Além da censura instituída por governos, vivemos um cerceamento derivado da estrutura do capitalismo global, em que o poder econômico dita o que fazer e como fazer. No cenário atual, em que se observa o crescente número de governos que criam obstáculos à liberdade de informação e a consolidação de empresas de TI com um grande poder econômico e um certo controle do fluxo de informações, somos cerceados por toda uma estrutura que acaba por interferir na produção e difusão de informações.
Em 2018, Pena chamou atenção para esse tipo de censura ao publicar em sua coluna do jornal Extra uma receita de bolo com o apropriado título “Receita de bolo de pamonha”. A publicação foi interpretada como um protesto às diretrizes do Grupo Globo que proíbem jornalistas do conglomerado de fazer comentários políticos em seus perfis pessoais das redes sociais. Vale lembrar que, na época da censura do regime militar brasileiro, os jornais publicavam receitas de bolo nas páginas destinadas ao conteúdo que passava por censura prévia. Assim, publicar receita de bolo em espaços destinados a conteúdo jornalístico configurou-se como uma prática de protesto no jornalismo brasileiro. Recentemente, outros tipos de censura vêm sendo denunciados pelo jornalismo, indicando o uso do poder econômico para dificultar a difusão de informações.
Wagner Moura, diretor e produtor do filme Marighella, denunciou a censura que opera com instrumentos burocráticos para dificultar a divulgação da produção cultural. Em entrevista a Leonardo Sakamoto, ele declarou que estamos vivendo uma censura diferente, na qual instituições como a Ancine (Agência Nacional de Cinema) são usadas para dificultar produções das quais o governo Bolsonaro discorda. O filme Marighella deveria ter sido lançado nacionalmente em novembro de 2019, mas a Ancine dificultou a liberação de verbas para divulgação, o que estava previsto no edital, e cobrou prestação de contas da produtora. O filme, que já foi exibido em festivais internacionais em cidades como Berlim, Nova York e Lisboa, apresentou recentemente uma nova data de lançamento no Brasil, 14 de maio. Wagner Moura destaca que as instituições estão sendo aparelhadas pelos preceitos do bolsonarismo, tanto que Marighella ainda não foi lançado no Brasil devido a um contexto político que usa as agências de fomento à cultura para censurar filmes com abordagens que não interessam ao atual governo. Também podemos observar esse tipo de censura no Ministério da Cidadania, que suspendeu o processo de concorrência do edital BRDE/FSA-PRODAV – TVs Públicas – 2018, fomentando a produção de conteúdo LGBT.
Bigtechs também censuram
Grandes empresas das telecomunicações também estão praticando um tipo de censura que impede o acesso às informações. Conforme The Intercept Brasil denunciou, os provedores de internet Claro, Vivo e Net bloquearam acesso ao site Women on Waves, que fornece informações sobre direitos sexuais e aborto seguro. O bloqueio ao site pelas empresas não é transparente e não apresenta uma justificativa aos clientes, sendo considerado um tipo de censura invisível. The Intercept Brasil destaca que os provedores de internet só podem bloquear o acesso a sites com conteúdo ilegal e que, de acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), informações sobre métodos abortivos seguros são públicas – segundo a legislação brasileira, o crime está em praticar o aborto.
Em um teste recente com uma conexão Vivo, foi possível acessar o site, mas, pela Claro, ele continua indisponível. Em dezembro de 2019, enviei no espaço de clientes da Claro uma reclamação solicitando o acesso ao site. A empresa não me deu retorno e, através da minha conexão com telefonia móvel, continuo sem acesso ao Women on Waves. Claro e Vivo respondem por metade das conexões de banda larga no Brasil e, ao bloquear o acesso a um site, interferem drasticamente no acesso da população a uma determinada informação. Esse tipo de censura invisível demonstra a força das empresas de telecomunicação, que podem utilizar seu poder econômico para determinar o que a população pode ou não acessar.
Assim como as empresas que fornecem conexão podem cercear o acesso a informações, os motores de pesquisa e os aplicativos de redes sociais, com seus algoritmos nebulosos, são capazes de esconder informações e dificultar interações. Quais os critérios do Google para os resultados apresentados nas primeiras páginas de uma busca? Se, no início da história do buscador, os critérios eram número de acessos e relevância dos domínios, atualmente outros critérios interferem na ordem apresentada para o resultado da pesquisa e, dependendo o tamanho do resultado, a tendência é o internauta consultar apenas as primeiras páginas, viciando as respostas do sistema. Além disso, quando usamos apenas o Google para fazer uma pesquisa na internet, estamos descartando páginas que não estão indexadas pelo buscador. O The Intercept Brasil já denunciou que o agregador Google News esconde o TIB nas suas recomendações.
Ao ficarmos dependentes de uma empresa, como no caso do Google, estamos acessando informações que passam pelo filtro de uma grande corporação. Essa corporação traz orientações através de cursos e tutoriais sobre como usar seus recursos e serviços, mas podemos problematizar o que acontece com pessoas e instituições que não se adaptam à sua proposta. Provavelmente não estão presentes nos resultados de pesquisa e nos outros serviços oferecidos pela empresa, o que não é transparente para a maioria dos internautas.
Os aplicativos de redes sociais trazem restrições que não são explicitadas aos seus usuários e, além disso, configurações podem ser alteradas sem o devido esclarecimento, interferindo no acesso a outros perfis e suas publicações. O aplicativo chinês Tik Tok, que é utilizado principalmente por adolescentes e está se difundindo rapidamente entre os internautas brasileiros, ficou conhecido por suprimir críticas a sistemas de governo, principalmente sobre o comunismo chinês. Nas regras comunitárias, o Tik Tok explicita a necessidade de obedecer à legislação local, mas não deixa claro se o sistema identifica as diferentes legislações dos países onde o aplicativo é utilizado e se isso interfere no acesso aos conteúdos publicados pelos usuários.
Se temos uma censura que opera com a burocracia, com os algoritmos e as restrições na conexão, cabe ao jornalismo identificar esses cerceamentos que não são devidamente informados à sociedade, problematizando os interesses por trás de tal impedimento. Como Joel Simon destaca, nesse cenário de excesso de informações é preciso identificar o que não sabemos e investigar o que motiva a existência dessa lacuna. Assim, para os que acreditam que os jornalistas são uma espécie em extinção, como o presidente Bolsonaro declarou recentemente, pode-se observar que o trabalho jornalístico é cada vez mais importante na busca pela transparência das decisões e na luta contra o cerceamento às informações.
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Silvia Meirelles é pós-doutoranda no PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS.