No dia 10 de março passado escrevi neste Observatório artigo em que perguntava: ‘conseguirá Cristina fazer o que Lula não fez?’ (ver aqui). Referia-me, então, ao anúncio da presidente argentina na abertura da sessão legislativa do Congresso reiterando o envio de um projeto de lei de regulação dos serviços audiovisuais, no dia 1º de março de 2009. O projeto, dizia Cristina, teria por objetivo desmonopolizar o mercado e democratizar a comunicação, substituindo o decreto-lei 22.285 promulgado pela ditadura militar, em 1981.
No último 10 de outubro, o projeto anunciado se transformou na Lei 26.522 – Serviços de Comunicação Audiovisual. Amplamente discutido em todo o país, foi alterado duzentas vezes durante sua tramitação e, finalmente, aprovado na Câmara dos Deputados (146 votos a favor, 3 contra e 3 abstenções) e no Senado (44 votos a favor e 24 contra).
Exatos sete meses depois, portanto, a resposta à pergunta formulada é: Cristina Kirchner conseguiu, sim, fazer o que Lula não fez.
Garantindo a liberdade de expressão
Você leitor(a) já deve ter ouvido e/ou lido sobre a nova lei Argentina (certamente, contra). Ela contraria interesses de poderosos grupos de mídia locais que contam com aliados também poderosos no nosso país.
Pergunto, todavia, se ouviu e/ou leu em algum veículo de comunicação no Brasil, a própria lei ou mesmo o endereço eletrônico que dá acesso a ela? Faço-lhe, então, um convite: leia e estude a Lei 26.522 e tire, você mesmo, suas conclusões. Ela está disponível aqui.
O leitor(a) que se der ao trabalho verificará que a lei argentina busca a regulação do mercado de mídia, que fica dividido em três partes iguais: para a iniciativa privada, o Estado e a sociedade civil. Com isso, impede-se a concentração da propriedade, a propriedade cruzada e, sobretudo, promove-se a pluralidade e a diversidade através da garantia da liberdade de expressão de setores até aqui excluídos do ‘espaço público midiático’ – povos originários, sindicatos, associações, fundações, universidades – através de entidades sem fins comerciais.
Além disso, são garantidas cotas de exibição para o cinema argentino, para a produção nacional, o fomento à produção de conteúdos educativos e para a infância. As novas concessões e as renovações de concessões terão que passar por audiências públicas e foi criada uma Autoridade Federal de sete membros e um Conselho Federal de 15 membros, que cuidarão do cumprimento da lei, incluindo os vários itens a serem ainda regulamentados pelo Congresso Nacional.
É interessante observar que algumas das normas da lei argentina constam também de nossa própria Constituição. Como, todavia, aqui essas normas não foram regulamentadas, se transformaram em letra morta. Muitas normas já são, também, rotina em democracias consolidadas.
Onda latino-americana
A lei audiovisual argentina foi aprovada num momento histórico em que alterações na regulação da mídia ocorrem em países latino-americanos que passam por transformações políticas profundas: Venezuela, Bolívia, Uruguai, Equador, Nicarágua.
O que há em comum entre os países que hoje patrocinam iniciativas de regulação do setor audiovisual?
Primeiro, é preciso lembrar que as mudanças tecnológicas das últimas décadas fizeram das antigas regulações da mídia leis obsoletas e, portanto, de atualização inevitável. Segundo, os atuais governos desses países tiveram sua origem na mobilização e participação de setores da população até aqui marginalizados ou excluídos dos processos políticos e chegaram ao poder através de eleições democráticas, em geral, enfrentando a oposição partidarizada, explícita ou não, da grande mídia local.
Dessa forma, a desqualificação rotineira de populistas ou neopopulistas que a grande mídia latino-americana – e seus aliados – faz a esses governos carece de qualquer fundamentação conceitual ou teórica. Não é sem razão, portanto, que conceitos como ‘autoritarismo eleitoral’ (?!) já começam a ser utilizados, pelo menos no Brasil, entre os setores da grande mídia e/ou acadêmicos que defendem ‘a circulação democrática das elites’ e se estremecem diante até mesmo da possibilidade de aumento da participação popular no poder.
Partidarização
É dentro deste amplo contexto político que adquire sentido a crescente partidarização da grande mídia, certamente um fenômeno que não está restrito às democracias da América Latina (vide o que acontece nos Estados Unidos e/ou na Itália), mas que assume, aqui, um caráter particular. [Ver, neste Observatório, ‘A mídia como partido político‘, ‘A imprensa entre o `quarto poder´ e o `quarto partido´‘ e ‘O governo entrou no jogo‘]
Registre-se que a partidarização da mídia não é um fenômeno novo. Trata-se de tema universal que tem sido objeto de pesquisa e análise nos estudos de Comunicação e da Ciência Política há décadas e que conta com robusta bibliografia.
Se a ‘crise’ que, sobretudo, a mídia impressa enfrenta, em decorrência da revolução digital, está hoje levando à partidarização como forma (equivocada) de sobrevivência, o fenômeno histórico não pode, com o mínimo de seriedade, ser reduzido a uma mera ‘acusação ideológica da esquerda radical à imprensa’.
A cobertura que a grande mídia brasileira tem oferecido às iniciativas de regulação das atividades de comunicação nos países referidos – Argentina, Venezuela, Bolívia, Uruguai, Equador e Nicarágua – certamente passará à história como exemplo emblemático de partidarização e defesa dos próprios interesses.
A Lei 26.522 – Serviços de Comunicação Audiovisual aprovada na Argentina precisa ser estudada e debatida por todos nós. Ela certamente servirá de exemplo para iniciativas democráticas de regulação que pretendam garantir aos cidadãos a liberdade de expressão, plural e diversa, e, ao mesmo tempo, a competição complementar e equilibrada no mercado de mídia.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)