Há muito tempo venho defendendo o respeito aos conceitos que usamos, considerando, inclusive, tal atitude como revolucionária, diante da tamanha deturpação existente, inclusive da parte de alguns dos nossos mais conhecidos jornalistas, sociólogos, geógrafos, historiadores, psicólogos etc.
Pessoas de má-fé, ou simplesmente enganadas pela onipresente propaganda goebbelista, afirmando que estamos numa democracia, república e federação (por exemplo), têm escravizado a mente de muitos profissionais, inclusive de ‘nossos melhores quadros’, tornando-os multiplicadores do engano.
Num país onde predomina o sentimento, a emoção e a paixão, ao invés da razão, surge o ‘homem cordial’, ou melhor, o ser movido pelo coração, e não pelo intelecto, como afirma o pai do Chico, Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. É o jeitinho brasileiro de criar uma realidade virtual segundo sua própria imagem e semelhança [ver aqui].
O ideal e o real
Apenas o ‘homem cordial’ é concebido como negatividade pura, entidade amorfa, dominada pelo conteúdo emotivo imediato e pela necessidade desmedida de reconhecimento alheio. (…) O racionalismo típico desta última forma de comportamento foi chamado por Weber, conseqüentemente, de ‘acomodação ao mundo’. (…) No Brasil, a figura correspondente, em termos de realidade histórica, é o ‘mazombo’. O mazombo é o filho do português nascido no Brasil, cujas características são muito semelhantes ao perfil do homem cordial traçado por Sérgio Buarque:
(1) individualismo personalista
(2) busca de prazeres imediatos
(3) descaso por ideais comunitários e de longo prazo (…).
Reencontramos aqui desde as incapacidades do homem cordial de Sérgio Buarque até a ausência de associativismo e iniciativa do Brasil tradicional de Schwartzman.
[‘A Ética Protestante e a Ideologia do Atraso Brasileiro’, de Jessé Souza. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, n. 38, São Paulo, out. 1998. Print ISSN 0102-6909; ver aqui]
O Estado, historicamente, é privatizado pelos mais ricos, os quais o usam para dominar a classe trabalhadora, consumidora, eleitora e contribuinte através do sistema de ensino e da mídia. Mais detalhes em ‘Análise dos Tipos de Poder‘.
Assim, até mesmo uma entidade nacional que milita pela democratização da comunicação, congregando tantas outras e capitaneada há longa data pela Fenaj – Federação Nacional dos Jornalistas, pode confundir o ideal com o real e tomar este por aquele [ver aqui desenho esquemático acima sobre o ideal, real e ilusão ou em].
Dez famílias dominam setor da mídia
‘O FNDC destaca que o sucesso da Confecom, em suas várias etapas, depende da manutenção do espírito democrático instalado na referida CON, preservando-se a participação dos setores interessados: movimentos sociais, governo, empresários.’ [ver aqui]
O FNDC considera que haja um ‘espírito democrático’ numa comissão onde a representação dos empresários da mídia é extremamente superior à sua participação percentual na sociedade? A portaria que a constituiu determina que eles são nove numa comissão de 24 membros, ou seja, 37,5%… Há algum ‘espírito democrático’ numa delegação onde estes empresários e o governo, financiado pelos grandes capitalistas em geral, dominem 60% dos votos?
‘Garantir a participação de todos os setores envolvidos na Confecom’, caso houvesse o tal ‘espírito democrático’, não implicaria uma representação proporcional a sua contribuição na sociedade? De que adianta todos participarem, se a representação é inversamente proporcional à que ocorre no mundo real? Por que este interesse exacerbado em esconder que há uma ditadura dos empresários da mídia na Confecom? E dos capitalistas em geral, no país? [Ditadura da Mídia e Brasil Privatizado]
Numa estimativa simples, se umas 10 famílias dominam praticamente todo o setor comercial da mídia e consideramos que cada uma delas tivesse 20 membros, teríamos 200 pessoas representando 0,000 001% da população. Mas há um bom número de pequenos jornais e emissoras de rádios sob gestão privada espalhados pelo país que poderia engrossar esta conta.
Há negociação entre o lobo e a ovelha?
Segundo o sítio Os Donos da Mídia, todos eles somam apenas 19.466. Mas este valor ainda é apenas 0,0001% da população, ainda astronomicamente muito distante dos benevolentes 37,5% dos membros da Comissão Organizadora ou dos 40% dos delegados. Ou seja, o poder da mídia é tão grande que eles conseguem uma representação 400.000 vezes maior que a existente na realidade. Quatrocentas mil vezes maior! (40% dividido por 0,0001%).
E, para o FNDC, este inusitado privilégio de uma classe sobre a outra, em nada influencia no tal ‘espírito democrático’ que eles invocam… O único espírito que consigo perceber baixando nas sessões realizadas do centro da Confecom é o do Roberto Marinho! O mesmo espírito que encarnava sua viúva, quando disse que ele colocou o Collor no poder e o retirou quando quis…
‘´O Roberto colocou ele (Fernando Collor de Mello) na Presidência e depois tirou. Durou pouco. Ele se enganou.´
Em poucas palavras a rica viúva pôs por terra a autodecantada imparcialidade do jornalismo global. Vão ser necessários muitos outros livros para explicar que não foi bem isso o que ela quis dizer’ [Laurindo Lalo Leal Filho, [ver aqui].
‘Resta o desafio de realizar um bom debate nas etapas estaduais, articular boas propostas e negociá-las para que se tornem políticas públicas.’ [ver aqui]
E bota desafio nisto! Que tipo de negociação pode haver numa delegação, onde os interesses hegemônicos dos empresários, patrocinados pelo governo (e/ou o inverso), determinarão estas políticas públicas, em função de sua representação desproporcional? Há alguma negociação entre o lobo e a ovelha?
Matriz do pensamento único
A realidade que procuro explicitar nesta reflexão é exatamente o oposto de tudo que nós desejamos. Mas isto não permite qualquer conclusão sobre meu propósito, além de mostrar as coisas como elas são e combater o ufanismo irresponsável e a maximização emocional do pífio resultado obtido até agora, no processo de construção desta conferência. Por mais relevante que ele seja, relativamente, diante do quadro histórico do país, constituído por uma população predominantemente conservadora, analfabeta funcional e alienada.
O mérito disto tudo praticamente se resume no fato de que há uma discussão sobre o tema, ainda limitado a uma fatia mínima de nosso povo, o que já é algo extraordinário, se comparado à situação de um ano atrás. Ainda que uma parte das lideranças dos movimentos sociais esteja envolvida, suas bases muito pouco ou praticamente nada sabem sobre o assunto. Só que isto nada tem a ver com qualquer ‘espírito democrático’ na I Confecom.
Basta fazer uma pesquisa rápida, por amostragem, na praça principal de qualquer cidade para constatar que 10% é um número muito otimista para aqueles que sabem algo a respeito. Fenômeno este que ocorre similarmente em qualquer tipo de Conferência Nacional, sendo esta, por sua sutileza, comparada com a saúde, por exemplo, ainda pior…
Certamente, esta situação é um obstáculo em nossa luta por um mundo melhor, já que a privatização do Estado, sistema de ensino e mídia, somados a séculos de dogmatismo religioso a serviço do capital, criaram uma realidade virtual, uma matriz do pensamento único (uma ‘matrix’), que escraviza os trabalhadores em geral, com raras exceções.
A triste e fria realidade
Desse modo, uma das grandes contribuições do pensamento gramsciano, que o transformou em referência obrigatória da chamada ‘nova esquerda’ européia dos anos 60-70 do século 20, consiste em ter revelado uma relação dialética entre a ‘objetividade’ e a ‘subjetividade’, o material e o espiritual. É nessa perspectiva que Gramsci formulou o conceito de ‘hegemonia’ e alargou a teoria de Estado apresentada por Marx e Engels. Além dos aparelhos coercitivos do Estado, a burguesia precisa obter o consentimento dos governados, para se garantir como hegemônica. E a formação do consenso dependeria da educação. Daí a ampliação sem precedentes dos mais diversificados meios de educação, desde a escola, um dos principais deles, até a imprensa e o rádio (Gramsci não conheceu a televisão). Foi nesse contexto, na virada do século 19 para o 20, que a escola pública e gratuita cresceu enormemente. [ver aqui]
Exatamente por isto, defendo ações radicais (porém pacíficas) para superar este problema, como o fiz no seminário da Abraço – Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, este fim de semana. Infelizmente, algo assim está ainda muito longe de acontecer, em função do desinteresse ou do desconhecimento dos prejudicados com tudo isto.
A insatisfação que a classe trabalhadora manifesta, geralmente não passa do discurso. Alienação quase total, com apenas uns gatos pingados, sonhadores e idealistas dando murro em ponta de faca, enquanto outros mais realizam espetáculos pirotécnicos, aparentemente voltados para a solução do problema, mas que quase nada acrescentam de fato à mudança de nossa realidade.
Política, na prática, é a arte de agradar aos ricos e iludir os pobres. É fingir que se faz o que a maioria quer, maximizar o resultado insignificante obtido e manter a massa entusiasmada como numa torcida de futebol (mesmo com o time indo para a segunda divisão), escola de samba (analogamente) ou igreja pentecostal, cuja pregação os incita a viver pela fé nas coisas invisíveis (Hebreus 11:1), cujo ideal, repetido muitas vezes, como se existisse de fato, pode se tornar uma realidade virtual, ainda mais forte que a real (uma ‘matrix’). Alguém já ouviu dizer que vivemos num ‘Brasil para todos’?
Então, gente, não quero desanimar os poucos que estão nesta luta, mostrando-lhes a dura, triste e fria realidade, mas tão somente e apenas equilibrar o enfoque, no mínimo, absurdamente otimista, existente no FNDC.
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Engenheiro civil, militante do movimento pela democratização da comunicação e em defesa dos direitos humanos